Visão optimista de um repórter de há setenta anos Uma terra da Beira Litoral dotada de grandes belezas naturais e de valiosas potencialidades materiais aguarda ainda a concretização das suas justas aspirações.
Não é já aquela terra de beleza e de ambicioso progresso que há três quartos de século foi descrita numa famosa reportagem publicada em A Capital, o mais lido vespertino português da época. Considerado o grande repórter da República, Hermano Neves, a quem devo, além da própria vida, as primeiras lições de jornalismo, visitou em 1916 as serranias da Beira Litoral e deixou, em páginas brilhantes e arrebatadoras, uma visão maravilhosa da zona em que se situa a aldeia onde nasceu, Alvares, uma das cinco freguesias do concelho de Góis. Região realmente encantadora, dotada de belos atractivos naturais, em que as vertentes da caprichosa orografia se apresentavam cobertas de densos pinhais e de vetustos castanheiros, com abundantes nascentes cujas águas alimentam os ribeiros que serpenteiam pelos vales profundos, o cronista procurava suscitar motivos que pudessem contribuir para a valorização do País. A sugestão das montanhas alpinas inspirou-lhe a designação da reportagem com que pretendia estimular o espírito adormecido dos seus compatriotas: a «Suíça Portuguesa». Não que o primitivismo atávico da terra beiroa permitisse aproximar a pátria de Guilherme Tell do quadro magnífico, embora estático, que se lhe deparava, mas na esperança de que as suas palavras entusiásticas pudessem despertar, a par dos aspectos convidativos da descrição, o interesse prático de promover o aproveitamento das potencialidades que ofereciam animadoras perspectivas para o progressivo desenvolvimento da região.
Uma terra privilegiada A zona percorrida pelo repórter, além de privilegiada por admiráveis dons da natureza, só de si capaz de animar um rendoso movimento turístico, possuía também recursos materiais que, criteriosamente aproveitados, poderia fazer dela, uma das mais ricas de Portugal. Não só Góis, a sede do concelho, oferecia condições excepcionais para atrair o forasteiro, como as vastas cercanias se mostravam dotadas de abundantes riquezas susceptíveis de serem vantajosamente utilizadas. Sabia-se que, em tempos remotos, se exploravam no vale do Ceira, que atravessa a localidade, aluviões auríferas cujos vestígios eram ainda evidentes; conheciam-se nas imediações jazidas de outros minérios que poderiam ter aproveitamento de importante significado económico; as águas provenientes das nascentes abundantes nas montanhas constituíam reservas de energia que aguardavam apenas nas gargantas rochosas do seu percurso a transformação em força motriz, numa produção hidroeléctrica capaz de determinar a poupança do carvão que importávamos com grave inconveniente para as finanças públicas; as excelentes madeiras de pinho e de castanho fornecidas pelas florestas poderiam ser boa matéria-prima para a indústria de mobiliário e para a construção civil, e a riqueza piscícola, que abunda de belas trutas e outras espécies muito apreciadas, bem podia, se devidamente explorada numa sistemática organização comercial, abastecer o consumidor dos grandes centros.
Esforço de modernização Tudo dependia, porém, de um esforço de modernização que pudesse vencer o imobilismo dos poderes públicos e a inércia das populações, marcadas pelo estigma do fatalismo resignado em que viviam. Era reduzidíssima a rede de estradas, as povoações não passavam de tranquilos aglomerados de sombrias casas de xisto, cobertas pela ardósia, que abunda nas redondezas, sem água corrente, sem esgotos e sem luz eléctrica. As pessoas aceitavam pacientemente viver num triste isolamento, só cortado pelas veredas de difícil acesso que cruzavam as matas em que ecoavam ainda os uivos dos lobos, atemorizando os moradores, aferrolhados nas suas habitações desconfortáveis. Para além destas condições mínimas, que nada favoreciam o convívio entre as gentes serranas, o pouco contacto humano que existia determinava o embrutecimento e a ignorância, que não facilitavam os mais ínfimos resquícios da civilização. Desde meados do século passado, por exemplo, no Colmeal, uma das mais populosas freguesias do concelho goiense, vivia-se uma existência de alheado afastamento, em que só se destacava um ou outro residente menos conformado, entre os quais se distinguiam os caciques monárquicos, que apenas se evidenciavam, todavia, por ocasião de eleições. Outros, menos resignados, emigravam, mas não se afoitavam para longes terras, limitando-se, na maioria dos casos, a seguir para Lisboa, em busca de colocações mais favorecidas, embora em misteres humildes, como moços de fretes ou limpa-chaminés. Havia ainda os que se deslocavam periodicamente para as planícies alentejanas, incorporados nos grupos de ceifeiros, que deixaram a sua triste odisseia conhecida pela designação humilhante de «ratinhos».
O «Professor de Sintra» Todos tinham um pequeno pé-de-meia, mas o seu acanhado espírito de iniciativa não lhes dava em geral para mais que o amanho temporário de exíguas courelas e o aproveitamento do milho, de que extraíam a farinha para cozer a broa, que era um dos poucos alimentos com que acompanhavam as febras de algum porquito que iam criando. De exigências muito limitadas, os colmealenses mal reagiam contra este fatalismo de uma resignação que dificilmente podiam combater. Um dos poucos que conseguiram fugir a este estado de coisas, mais afoito nas suas aspirações, foi um jovem colmealense que, no derradeiro quartel de Oitocentos, veio para a capital, disposto a experimentar um emprego de modesto marçano. Atraído pelo estudo, dotado de invulgar curiosidade intelectual, tirou o curso do magistério primário, adquirindo, assim, apreciável grau de instrução, que lhe permitiu trabalhar numa escola de Lisboa. Com essa bagagem, que o distinguia dos seus conterrâneos, decidiu regressar ao torrão natal, no propósito de contribuir para elevar o nível do povo, cujo atraso pretendia combater, tanto mais que se deixava, entretanto, arrastar pelos ideais republicanos, que começavam a florescer. Conseguindo ser nomeado professor da escola local, permaneceu algum tempo na aldeia, aonde se lhe foi juntar a esposa, também professora, que igualmente passou a partilhar da sua cruzada cultural. Talvez desanimado pela tacanhez do ambiente, António Joaquim das Neves, por sinal pai do jornalista que viria a exaltar mais tarde a sua terra como a «Suíça Portuguesa», obteve transferência para uma escola de Coimbra, que abandonou pouco depois por Sintra, onde viveu até morrer, em 1927, granjeado justa fama de professor competente e gozando de gerias simpatias de sucessivas gerações. A consideração de que usufruiu ficou patente numa comovedora homenagem que lhe prestaram os antigos alunos, cuja gratidão se encontra expressa em palavras de reconhecimento numa lápida que ainda hoje se vê afixada na fachada da escola em que leccionou: «Ao mestre que viveu ensinando – ao homem que ensinou vivendo», mas a fama que alcançou, durante o seu profícuo labor naquela aprazível estância de veraneio, não o fez esquecer os seus conterrâneos nem a sua aldeia de origem, onde a sua lembrança permaneceu sempre viva, embora sob o epíteto de o «Professor de Sintra». Lá voltou algumas vezes, para se desfazer de pequenas propriedades que adquirira e para rever os parentes e amigos da terra a que nunca deixou de estar ligado pelos laços do coração e a evocação dos tempos distantes da sua meninice.
Mário Neves (Diário de Notícias, 29 de Agosto de 1988)
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A «Suíça Portuguesa» (conclusão)
Consequências de atrasos lamentáveis A reportagem que sob o título de A Suiça portuguesa, o vespertino A Capital publicou em meados de 1916, subscrito pelo nome prestigioso de Hermano Neves, constitui não só uma brilhante peça literária, como uma análise perfeita e documentada, com vista à valorização daquela zona privilegiada da Beira Litoral. Ao longo de seis magníficos artigos, o cronista descrevia admiravelmente as terras que visitou e enumerava as suas extraordinárias potencialidades, apontando as mais urgentes soluções para os respectivos problemas, a começar pelo estabelecimento prioritário de uma rede de comunicações, sem as quais nenhum progresso poderia existir. De Góis, sede de concelho, fez o jornalista o ponto de partida para a sua aliciante jornada pela serra. A vila possui remotas tradições históricas e é dotada de algumas curiosidades artísticas e interessantes monumentos, que a recomendam para o turismo. Uma antiga ponte manuelina de três arcos dá acesso ao centro do povoado, agora por acaso dificultado pelo facto de um pesado camião ter derrubado uma das guardas laterais, o que exige especiais cautelas na travessia do Ceira. A igreja matriz, considerada monumento nacional e restaurada no século XVI, oferece o interesse da capela-mor, com um dos mais belos túmulos renascentistas que existem em Portugal. Dedicada a D. Luís da Silveira, conde de Sortelha e morgado de Góis, que foi embaixador de D. João III junto de Carlos V, é uma obra de arte digna de se admirar e que por isso mereceu ser reproduzida numa medalha mandada cunhar pelo Município local. Estas e outras riquezas justificam velhas aspirações de desenvolvimento turístico, em que o actual presidente da edilidade muito se tem empenhado. Com efeito, a par da obra meritória que tem realizado, o engenheiro-agrónomo Augusto Nogueira Pereira não esconde o desgosto de não ver incluída, prioritariamente, no Plano de Turismo Nacional, uma disposição que considere mais do que em 10 por cento a 30 por cento a atribuição de subsídios a fundo perdido para investimentos nesse sector.
Aspirações ignoradas Outras condições que há três quartos de século, se reputavam indispensáveis para o progresso do concelho, permanecem ignoradas ou só muito lentamente têm sido reconhecidas, como sejam alguns aspectos da valorização de certos recursos naturais. A Fábrica de papel de Góis, que funciona na Ponte de Sotam, é um bom exemplo dos empreendimentos que poderiam contribuir para o progresso concelhio, pois, empregando algumas centenas de operários, é afamada pela sua produção de qualidade. Accionada pela energia produzida, segundo a tecnologia obsoleta de 1912, no açude de Monte Redondo, já dispôs de um excedente que lhe permitia alimentar a localidade, a qual carece hoje de ir buscar a outras fontes da rede hidroeléctrica nacional. Diversos outros sinais de estagnação se têm verificado nestas últimas décadas, não obstante as justas aspirações entretanto manifestadas pelos povos da região. No capítulo das comunicações, a situação é deveras confrangedora. O caminho-de-ferro da Lousã, inicialmente previsto para se prolongar até Góis, nunca passou de Serpins, e a estrada para o Colmeal, começada por volta de 1880, com escassas centenas de metros, só em 1973 chegou ao seu destino! Algumas das estradas há muito projectadas só recentemente viriam a assegurar as ligações entre todas as freguesias e as várias povoações da serra. Alvares, que unicamente há menos de 10 anos ficou ligada a Pedrógão por ampla via alcatroada, que atravessa a nova ponte junto à localidade, viu por esse facto diminuída a sua importância económica, e da fábrica de têxteis que ali existia, com uma produção conhecida em todo o país, apenas resta uma imponente chaminé sem qualquer utilidade. A ausência de comunicações impediu outras explorações de interesse económico. Diz-se, por exemplo, que os últimos garimpeiros que andavam pelo vale do Ceira em buscado ouro arrastado pela água do rio desapareceram por volta de 1940, e outras riquezas mineiras, como o volfrâmio, explorado pelas imperativas conveniências da guerra de 1939-45, encontram-se desde então abandonadas. Muitas das estradas que teriam servido para quebrar o isolamento das povoações não passaram, durante largos períodos, de meras aspirações sem concretização. O Estado Novo, empenhado em obras mais visíveis e espectaculares, pouca ou nenhuma importância dedicou à região desprezada. A luz eléctrica, que a legislação da época apenas permitia que fossem iluminadas as sedes de freguesia, apenas chegou ao Colmeal em 1971 e foi preciso que se desse o 25 de Abril para que essa simples nota de civilização se estendesse a outras aldeias por volta de 1979.
Nova fisionomia dos povoados A fisionomia dos povoados só recentemente começou a modificar-se, graças a esse elementar melhoramento e à expansão de uma política de saneamento básico, com a abertura de esgotos e outras condições indispensáveis para satisfazer as necessidades das populações locais. A pedra nua e sombria das casas de xisto foi sendo substituída gradualmente pelo reboco caiado ou pintado, às vezes por cores berrantes e nem sempre muito felizes. Um exemplo típico é ainda o do Colmeal que oferece agora uma perspectiva mais alegre e acolhedora, em que os seus habitantes vivem uma existência mais agradável e feliz. Com uma população de pouco mais de cem almas, a vida decorre ali praticamente em torno de dois estabelecimentos, mistos de café e de minimercado, situados no largo da localidade, baptizado na década de sessenta com o nome de uma modesta filha da terra, cuja evocação apenas se justifica pela circunstância de se tratar da mãe de uma destacada personalidade do Estado Novo.
Entre os actuais colmealenses que ali acorrem em geral na altura das férias, há também alguns emigrantes que regressaram das Américas ou de certos países da Europa para gozarem em tranquilidade a sua reforma nas novas moradias, que têm dotado de melhores condições de habitabilidade. Além destes poucos que ficaram definitivamente pelo País, atraídos pelo sossego reconfortante que ali encontram, alguns há que só se deslocam por curtas temporadas, retidos ainda por ocupações absorventes, sem possibilidade de mais prolongadas ausências. É, por exemplo, o caso de um activo agente comercial, Fernando Costa, que, a par da intensa actividade profissional, se dedica a aturadas investigações acerca dos antecedentes da terra natal, recolhendo material que lhe permite assegurar assídua colaboração na imprensa regional. Com larga propensão artística, tem-se distinguido igualmente como apreciável pintor naïf, cujas obras apareceram em todas as exposições do género ultimamente realizadas no País e figuram já em museus da especialidade do estrangeiro.
Espectáculo desolador Agora, que a região vai vendo melhoradas as suas condições de progresso, lamentáveis circunstâncias contribuem para prejudicar a imagem que mais a poderia aproximar da evocada «Suiça portuguesa». O horizonte perdeu muito do aspecto imponente que oferecia outrora nas vertentes arborizadas das montanhas, devido aos incêndios que impiedosamente têm devastado as serranias. A estrada de Folques, que dá acesso a Arganil, via de penetração através dos cumes imponentes, construída em pequenos lanços, só há pouco foi concluída com fundos da C.E.E. Embora ofereça a beleza de um verdadeiro deslumbramento panorâmico, constitui um triste e desolador espectáculo, com a amplidão das suas superfícies escalvadas. Em vez das vastas áreas de vegetação que se nos deparavam noutros tempos até perder de vista, vêem-se apenas as manchas das devastações provocadas pelos incêndios que transformaram os concelhos de Góis, Arganil e Lousã numa imensa zona nua, que os Serviços Florestais têm procurado repovoar, num esforço notável e tantas vezes inglório, devido à fatalidade das condições adversas da natureza e, até, à acção criminosa do próprio homem.
Mário Neves (Diário de Notícias, 30 de Agosto de 1988)
(De transcrições feitas por Francisco Silva no site da U. P. F. C.)