A chamada “Borda d’Água” marcou com letras grossas a memória dos cortenses. Décadas após décadas, a escassez do trabalho fez sair da terra a gente jovem em direcção às vastas e rica planícies ribatejanas onde havia sempre necessidade de muitos braços para o cultivo das terras e colheita das culturas. Há muitos habitantes do Cartaxo que são oriundas da humilde aldeia de Cortes e que, à semelhança dos seus pares, deixaram o lugar que os viu nascer para durante alguns meses amealharem o dinheiro com que as famílias da aldeia se iam governando. A “Borda d’Água” era a expressão utilizada para designar o trabalho dos campos do Ribatejo durante quatro meses (desde Setembro a Dezembro ou desde Fevereiro a Maio) e que consistia sobretudo em dois tipos de trabalho: a vindima, na qual participavam maioritariamente mulheres; e a apanha da azeitona onde homens e mulheres trabalhavam. O êxodo rural tinha esta designação, não só porque muitos dos campos onde os cortenses faziam pela vida, fronteiravam com rios (Nabão, Zêzere, Tejo), como também havia nas mediações zonas inundadas fazendo com que os trabalhadores contactassem de muito perto com a água. As principais zonas de trabalho da “Borda d’Água” durante o século XX eram o Arrepiado (Chamusca), a Gerdoa (Campo de Santa Margarida, perto da Barquinha), a Barquinha (Entroncamento) e a Abegoria (região do Cartaxo). Para recrutar gente confiava-se em capatazes da confiança do feitor, que iam a pé, de aldeia em aldeia, por essa serrania fora a anunciar a jorna aos interessados. Eles escolhiam os mais capazes e saudáveis e alistavam-nos. Havia um capataz para o rancho das mulheres e um outro para o rancho dos homens. Nas Cortes vivera, nos anos 1940, dois capatazes da “Borda d’Água”: o Ti Manel Bandeira e o Ti Bragança, o que ajuda a explicar a elevada taxa de incidência de cortenses nesta migração temporária, em relação a outras aldeias vizinhas. No dia acordado, consoante se tratasse da vindima, ou da apanha da azeitona, reuniam-se os homens e as mulheres na Eira e, entregando os seus bens pessoais reunidos numa arca ao capataz, faziam-se ao caminho. O trajecto de centenas de quilómetros era percorrido a pé, indo os pertences à parte num carro de bois, ou mais tarde, numa camioneta. Era certo passar este cortejo de quase uma centena de pessoas, pela “ponte dos buracos” junto ao Tojal, lugar perto de Ferreira do Zêzere. Aí, os mais velhos baptizavam os “caloiros” do grupo, fazendo-os pôr a cabeça por entre a estrutura da ponte (os tais buracos). O trajecto demorava dois a três dias, mas apenar das bolhas nos pés, das cãibras e do tempo árduo que se aproximava, o grupo seguia bem-disposto e animado, com brincadeiras, anedotas, piropos e cantorias”
Samuel Mateus (de Memórias do Antigamente-Monografia de Cortes, 2009)