Esporão, uma luz no concelho de Góis A povoação do Esporão está passando por um momento importante da sua longa vivência: a inauguração de diversos melhoramentos; as festas em honra do seu protector São Miguel, com a respectiva capela a fazer 250 anos; e a comemoração das bodas de ouro da sua Comissão de Melhoramentos. Pretexto para dar uma espreitadela a esta aldeia serrana, na vertente nascente do nosso Penedo, com vista a perder-se nos horizontes ímpares dos nossos montes, a proporcionar-nos uma aprazível vontade de viver. E para dá-la a conhecer um pouco mais aos nossos conterrâneos.
1- Um expectável polo de desenvolvimento Embora o testemunho mais antigo que o refira, de que temos conhecimento, seja datado do século XVI, estamos convictos que Esporão é um povoado bem mais antigo. D. João III, em 1527, determinou fazer o levantamento dos nomes das cidades, vilas e lugares que havia no reino, bem como quantos moradores havia em cada um deles, o que daria origem ao primeiro cadastro nacional, finalizado cinco anos depois, em 1532. Com a veracidade possível para a época (contudo “na Beira, a população foi registada com grande pormenor”), ali encontramos referência ao Esporão, num concelho onde a vila de Góis tinha então 77 moradores, Várzea d’Além 27, Várzea.da Igreja 12, Bordeiro 15, e todas as demais povoações com números dígitos, incluindo Cadafaz 9 e Colmeal 8... A sua denominação provém certamente da sua localização, junto ao Penedo. Entre os seus vários significados (nos campos da botânica, da zoologia, da medicina, da marinha, da arquitectura e da engenharia), “esporão” era (ainda o é?) o prolongamento de um contraforte montanhoso ou de uma vertente. E também se encontra associado à ideia de solidez. Alongando-se pelos seus “bairros” de nomes populares – Lugar Antigo, Lugar, Boleirinha, Cabeço da Fonte, Selada, Santo António, Estrada Nova –, o povoado tem características que fazem antever boas perspectivas de desenvolvimento. Tem uma estabilidade demográfica relevante, que não se observa em outra aldeia serrana do concelho, com manutenção do nível de 80 residentes que tinha em 1950, conseguindo assim contrariar a histórica emigração da região; com a particularidade acrescida de uma baixa faixa etária. Tem uma localização privilegiada, não apenas em termos geográficos, à beira da Estrada Nacional nº 2 do país, mas também de qualidade de ambiente e de paisagem natural (considerando apenas este aspecto, vale bem a pena uma prolongada estadia turística...). Tem uma dúzia de empresas sediadas, quatro delas industriais (para além de outras em concelhos vizinhos e que se encontram estreitamente ligadas à povoação). Tem infra-estruturas que não é normal ver-se para a grandeza populacional residente: para além de uma adequada área de restauração, vemos bomba de gasolina, campo de futebol, rancho folclórico federado, grupo de teatro, museu regional, biblioteca actualizada e com movimentação, jardim infantil, casa de convívio permanentemente aberta, grupo cultural.... Tem uma Comissão de Melhoramentos que, para além do seu brilhante passado, continua muita activa e virada para o futuro, com mais de 500 associados efectivos (e não aparentes), dos quais metade são forasteiros, oriundos de outras regiões do país, com os consequentes benefícios para a povoação. Para além de possuir uma identidade muito própria, alicerçada em famílias antigas ali enraizadas, que lhe fornecem estatuto social e económico. Mais do que uma comunidade, considero-a como uma comune, com aquele espírito de autodeterminação das antigas povoações que floresceram na Idade Média. Se um dia o Poder Local vier a optar pela criação de Polos de Desenvolvimento ao longo do espaço concelhio – para incentivar a sociedade civil e para contrabalançar as desarmonias e desavenças sociais que, por razões históricas e geográficas, se encontram enraizadas no concelho, facto que muito tem impedido o seu desenvolvimento – o Esporão tem o direito (e o dever) de reivindicar ser um deles. Tem todas as condições para isso.
2- A protecção de São Miguel do Esporão
A capela de São Miguel, símbolo espiritual da povoação, estará a fazer dois séculos e meio. Por escritura pública de 29 de Janeiro de 1754, o padre António Lopes Falcão, ainda antes da sua construção, fazia doação de uma capela à povoação, para “invocação das almas”. Era ele então o pároco da freguesia de Góis, ali nascido de Ana Paixão e do Dr. António Lopes Falcão, médico em Góis, que viria a falecer em 1741. Tenho como hipótese muito crível que a capela foi inaugurada durante o ano seguinte, em 1755, o que espero vir a confirmar em futuro próximo. E julgo que a opção por este patrono São Miguel terá sido decidida nessa mesma época: sendo representado imaginariamente (e que não se deixe de apreciar a bela imagem em madeira policromada ali existente), numa das mãos, com uma balança, a qual, colocando-se nos seus pratos as boas obras humanas e a alma do julgado, conferia ou não a sua entrada no Paraíso; e, na outra, a mão direita, a espada, defendendo essas almas, quando o demónio pretendia levá-las para o inferno... que outro santo haveria mais apropriado senão São Miguel, para invocação das almas e não ser escolhido de imediato? Um santo aliás que é venerado, desde o início da Idade Média, principalmente em muitas igrejas de montanha. Foi protector de Israel, protector do Santo Império Romano, protector da Igreja Católica, E, em Portugal, nos primeiros tempos da monarquia, os reis e o povo viam São Miguel como o espírito tutelar do país. D. Afonso Henriques, que tinha sido baptizado na Igreja de São Miguel, em Guimarães, dedicou-lhe a capela privativa no seu palácio de Coimbra e era nela que os nossos reis cumpriam os seus deveres religiosos. Pois refira-se que é aqui, no Esporão, nas suas alturas, o único local do concelho de Góis onde São Miguel é venerado. E sendo também aqui o único patrono que, além de santo, foi anjo (aliás um dos três arcanjos nominalmente referidos nas Escrituras), por isso um santo espiritual, pertencente à corte celestial, cantando os louvores a Deus, intermediário entre Ele e os homens, razão acrescida terão os seus naturais para ainda mais o dignificarem e pedirem a sua protecção. E motivo também para que os goienses em geral, a viverem uma época de tanta divisão social e de tão compreensíveis preocupações quanto ao futuro da sua terra, olhem para São Miguel Arcanjo, melhor dizendo, para São Miguel do Esporão, como um dos espíritos tutelares do concelho...
3-Uma colectividade alis volat propriis.
É compreensível o orgulho que todos os ligados ao Esporão sentem pela sua Comissão de Melhoramentos, uma colectividade que se habituou desde o início a voar com as suas próprias asas. Com a data oficial de registo de nascença a 4 de Dezembro de 1954, iniciou já as comemorações das suas bodas de ouro, com inauguração de novos melhoramentos: não apenas voltados para o bem-estar dos seus residentes (campos de malha, parque infantil, área de lazer, obras complementares da sua boa Casa de Convívio – até com instalações totalmente mobiladas para receber forasteiros...), mas também para a conservação das suas memórias e o reforço da sua própria identidade (toponímia em cerca de uma dezena de locais, honrando os seus antepassados, e abertura do museu, em casa própria e bem elaborado – local que também não pode deixar-se de aconselhar uma pormenorizada visita, para se conhecer os costumes desta pequena-grande comunidade e sentir a sua História, na ligação ao passado e à vivência do presente). Mas a colectividade deu os primeiros vagidos uns anos antes, como se verifica pela grande festa em 8 de Julho de 1954, inaugurando então grandes obras, que vinham sendo preparadas anteriormente pela já existente Comissão de Melhoramentos, embora não estivesse ainda oficialmente constituída. O seu aparecimento na década 50 do século passado foi consequência do movimento social e económico que então se vivia em Portugal. Entre as candidaturas à Presidência da República de Norton de Matos (1949) e de Humberto Delgado (1958), que provocaram autênticos “terramotos” na nossa sociedade e que marcaram os tempos da minha primeira época estudantil, o país atravessou uma fase de uma aparente tranquilidade social e sobretudo de perspectivas de arranque económico, o que motivaria muitos emigrantes, voluntariosos, a intervir entusiasticamente no desenvolvimento das suas terras natal. Assim se compreende que tenha surgido, e só para mencionar na freguesia de Góis e à volta do Penedo, as colectividade de Cerdeira (1952), Ribeiras (1952), Ladeiras (1953), Povoações do Sotam (1953), Esporão (1955), Povorais (1956), Vale Torto (1957), para além de Carvalhal Miúdo, que não vingou, e da própria Casa do Concelho (1954). Uma colectividade que apenas teve, ao longo dos seus 50 anos, três Presidentes. O primeiro, o impulsionador da colectividade, morreu com 36 anos de idade, por sinal ao serviço da colectividade; o terceiro, o actual, sendo director desde o início, já leva, pelo menos, 35 anos de timoneiro principal. Um exemplo de vontade e de perseverança. E de acreditar no futuro. Conseguindo motivar a juventude, juntando a sua força e imaginação à experiência e à determinação dos mais idosos. Aqueles ainda cépticos quanto ao futuro do regionalismo no nosso concelho, bem podiam espreitar um pouco esta colectividade e, mais do que os olhos observam, sentir o que vai na alma em toda a sua grande equipa. Ou não fosse o regionalismo, sobretudo, um estado de alma! Falar aqui sobre a obra projectada e concretizada ao longo dos seus 50 anos de existência, seria certamente ingrato para mim e fastidioso para os leitores. Nem sobre os seus projectos futuros, nomeadamente com criação de empregos e valorização do património construído, alguns deles em curso (ainda em tempo não muito distante foi feito, como sempre às suas custas, o levantamento do Lugar Antigo, com respectivo projecto de recuperação e reabilitação dos imóveis). Mas não posso deixar de referir duas características que são ímpares no meio do movimento regionalista goiense (e é justo recordar que as outras colectividades regionalistas também têm as suas virtudes, as suas próprias característica e a sua obra valiosa): foi-lhe concedido, pelo Poder Central, o estatuto de Instituição de Utilidade Pública, conferindo-lhe deste modo uma importância social relevante; e foi-lhe confirmado, pelo Poder Judicial, a administração do Lugar do Esporão, ao longo de dezenas de hectares, sequência de uma doação feita outrora pelos Senhores de Góis. Isto é, o Poder Central e o Poder Judicial da nação reconhecem oficialmente a importância e a responsabilidade que a colectividade tem no desenvolvimento da região. Ocasião para perguntar: e o Poder Local? Seria justo (e como seria bonito!) que, no dia oficial do seu aniversário, 4 de Dezembro, também o Poder Local reconhecesse oficialmente a importância desta Comissão de Melhoramentos. Num concelho, que na sua lonjura de 265 Km2 se encontra mergulhado em densas trevas, aqui e ali salpicado por alguns pontos luminosos, alguns deles quase a apagarem-se de vez, o Poder Local (não apenas a Câmara mas também a Assembleia Municipal, pois que o Regulamento do Município lhe concede poderes apropriados), não pode ignorar estas autênticas linhas de força que a sociedade civil evidencia. Competindo-lhe criar condições e incentivar a sociedade civil para que ela possa criar riqueza, o Poder Local tem aqui um campo de acções a promover, não apenas ad perpetum rei memoriam, mas sobretudo na valorização e no apoio na obra que está a desenvolver a favor do concelho. O que não se esgota em ajuda material, pois, como agora é de bom tom dizer-se, há muito mais vida para além dos euros. Não tenhamos dúvidas: o Esporão é uma luz cintilante no firmamento do concelho de Góis. JNR (de Jornal de Arganil, Setembro de 2005)