Entrevista com Doutor João de Castro Nunes, inserida no livro O Concelho de Góis. Ensaio da reconstituição da sua História (do século XII ao séculoXXI).
Natural de Braga. Doutorado em Filologia Clássica pela Universidade de Coimbra. Professor de Cultura Portuguesa nas Universidades de Santiago de Compostela, Barcelona, Salamanca e Católica de Paris. Vice-Reitor da Universidade de Luanda e director dos respectivos Cursos de Letras na secção de Sá de Bandeira. Professor jubilado da Universidade Clássica de Lisboa. Coordenador das áreas de Epigrafia e Arqueologia dos Departamentos de História e de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Director do Departamento de História da Universidade Lusíada, de Lisboa, em substituição do Embaixador Franco Nogueira e por vontade expressa deste. Vogal do Fórum Unesco – Universidade e Património. Investigador de gabinete e de campo. Autor de meia centena de trabalhos sobre matéria da sua especialidade (arqueologia e linguística). E poeta.
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JNR: Gostaria de conhecer a sua ligação a Góis. Deve-se ao seu matrimónio, ou, anteriormente, a minha terra já se encontrava no percurso da sua vida profissional e académica? JCN: Estava seguramente escrito que seria Góis a minha segunda pequena pátria depois de Braga, minha terra de nascimento que, aliás, nunca enjeitei por indissolúveis e honrosos laços de progenitura e por fundas lembranças de uma juventude acarinhada e feliz, além de promissora. Saí do "ninho meu paterno" aos dezoito anos rumo a Coimbra na mira, em cor azul, da borla e do capelo. Nada menos! Uma vez na cidade dos doutores, passei a ouvir o canto das sereias que de Góis me vinha, águas do Ceira abaixo, por motivações diversas, uma das quais, primeiríssima talvez, foi a sensação de deslumbramento que me causou a defesa da tese de doutoramento de Albin Eduard Beau acerca das relações germânicas do humanismo de Damião de Góis, brilhantemente arguida pelo Prof. Damião Peres. E o nome de Góis, terra avoenga da controversa personagem em acalorada altercação académica, nunca mais deixou de soar aos meus ouvidos: Góis! Goes! Góis! Era como um chamamento. Depois, foi a vez de, em trabalho escolar de fim de curso para a cadeira de Filologia Portuguesa, me calhar em sorte a antiga vila de Alvares quanto ao inquérito destinado à elaboração do atlas linguístico do território nacional, a cargo da Faculdade de Letras sob a direcção do Prof. Paiva Boléo que, a propósito, me prognosticou mais queda para os estudos históricos que propriamente linguísticos, no que redondamente se enganou. Partilhando com o meu distinto colega e amigo José Poiares, a quem foi atribuído o questionário relativo à sede do concelho, tive então a primeira percepção de que, no contexto do chamado padrão de Coimbra, a região goiense era a localidade do país onde melhor se falava o português. E, finalmente, deu-se o meu encontro com aquela que, meses depois, viria a ser minha mulher, a moça mais linda que alguma vez Coimbra tinha visto. A "Rucinha", como lhe chamavam pela cor dos seus cabelos puxando ao ouro velho! Foi na capelinha do Castelo que, num frio dia de Dezembro, em 1944, teve lugar o nosso casamento, o primeiro acto religioso ali celebrado após a sua reabilitação anos atrás. Inesquecível! Realizada a cerimónia sob os olhares ilusionados da fidalga população do burgo, que acorreu em grande número, durante muito tempo foi motivo de conversa. Tempos românticos, aqueles! Realizou-se o copo-de-água no amplo salão de tectos pintados de uma habitação pertencente à sua ilustre família, no centro da vila, cabendo ao seu aristocrático Avô, o Dr. Diogo Barata Cortez, o brinde inaugural. Um conto de fadas, que se havia de manter ao longo de sessenta breves anos. Como, Senhor Engenheiro, não havia Góis de ficar para sempre gravado nas entranhas do meu coração!
JNR: Para os da minha geração, o senhor Professor é a melhor referência viva do passado goiense. Considero a pessoa que mais tem conhecimentos da minha terra, do ponto de vista histórico e humano. Conhece o concelho por dentro e por fora, parecendo não haver aldeia ou lugar que desconheça ou "buraco" que não tenha tropeçado. O que fez apaixonar-se tanto (arqueológico - historicamente falando) por esta terra? JCN: Pode fiadamente dizê-lo. Não há "buraco" em todo o concelho onde, de carro ou a pé, não tenha tropeçado! Não há casa ou aldeia que não tenha visitado. Traste velho que não tenha visto e apreciado. Armário cujas portas não me tenham sido franqueadas. Gaveta que não tenha aberto. Em plena confiança, aliás correspondida. Além da incomparável beleza das suas paisagens de imaculada pureza ambiental, fascinava-me o carácter das suas gentes hospitaleiras e abertas que, mal me conhecendo, a não ser por referências, me acolhiam sem reservas e, dentro do possível, se associavam às minhas pesquisas e aos meus trabalhos, agradadas de haver alguém a interessar-se sabidamente pelo seu legado patrimonial, cujo valor elas próprias desconheciam. Não há palavras! Mas foi na vila que mais me senti como em casa própria: um goiense entre goienses, alguém que adoptara o burgo sob o impulso de um amor de romance de cavalaria à moda antiga, mas de novo posto em cena com cartas de amor em pergaminho e tudo. À Parsifal ou Amdis de Gaula. E Góis prestava-se, com todo o seu aristocrático envolvimento social! Enquanto não casei, aposentou-me em sua casa, fidalgamente, o pai do meu já referido colega e amigo José Poiares, o Senhor José da Silva Poiares que, ao pequeno-almoço, me servia em preciosa porcelana da Companhia das Índias, família rosa, indo ao extremo de me presentear com uma grande tigela quatrocentista de origem chinesa da dinastia Ming, que guardo como relíquia inestimável. Era tradição ter vindo nas primeiras armadas da expansão lusa no oriente. Estranho, mas acreditável, dado o envolvimento dos senhores de Góis, os Silveiras, com aquelas remotas paragens: "as minhas touquinhas da Índia", refere no seu testamento o 1º conde de Sortelha e guarda-mor de D. João III. E como esquecer as frescas e lindas rosas que, para oferecer à minha requestada noiva, ele me autorizava a colher no jardim confiado autarquicamente ao seu voluntário e zeloso cuidado à volta da capela do Castelo?!... Foram coisas assim e tantas outras do mesmo género que me permitem, Senhor Engº Dr. João Nogueira Ramos, corroborar a sua asserção de que, efectivamente, eu sou uma referência viva, pela positiva, da sociedade goiense que precedeu, de poucos anos, a sua geração. Por essa altura, de escassos meios financeiros, o concelho não se alterou grandemente em termos urbanísticos e rodoviários, é certo, mas operou-se uma interessante e considerável actividade cultural, em que me foi dado participar, quando não incentivar nas áreas específicas da minha formação. Era o predomínio do espírito, que então ditava as preferências! Falava-se de Góis nos meios cultos do país, academicamente. Essa era a questão! Contrariamente, nos outros concelhos à sua volta, com exclusão da Lousã, era uma apagada e vil tristeza, uma escuridão confrangedora, incluindo Arganil, que só mais tarde teve uns lampejos de brilhantismo cultural, de curta duração. Por experiência falo, pois por todos eles divaguei um pouco: Tábua, Seia, Gouveia, Pampilhosa da Serra, Vila Nova de Poiares, Oliveira do Hospital. Autênticos desertos culturais. Góis era outra coisa! Toda a gente se associava e colaborava, cada qual a seu modo, nas investigações tendentes a revelarem e relevarem o seu passado, tendo em vista a caracterização dos respectivos habitantes, puxando colectivamente ao elitismo social que, das famílias preponderantes, se estendia por contágio ao comum da população concelhia. Não se me dava haver tido por berço o renascentista e senhorial burgo de Góis, que aliás onomasticamente eu personalizava no vulto do ímpar humanista que pela Europa fez ouvir o seu nome! Góis era então, no meio culturalmente acinzentado dos municípios envolventes, um oásis de espiritualidade e de galanteria que fascinava a minha mente e vinha ao encontro das minhas pessoais opções de vida. Sem rebuços o afirmo! A sociedade goiense conquistou-me logo aos primeiros contactos, nunca mais se dissipando no meu espírito essa fascinação.
JNR: Teve uma forte vivência da sociedade goiense na geração anterior à minha e acompanhou de perto as modificações que entretanto ela sofreu nos últimos tempos. Com a sua formação técnica e humana, como caracterizaria hoje o concelho de Góis? Por outras palavras, o que diferencia das terras que o circundam? JCN: Repisando, diz o Senhor Engenheiro, e muito bem, que por diversos factores eu fui, eu sou uma referência para a geração imediatamente anterior à sua, ou seja, a dos seus progenitores e demais familiares. Efectivamente o assumo, dado o meu forte relacionamento com as pessoas de então aos mais diferentes níveis. Basta dizer-lhe que, durante mais de três décadas, estando eu a residir em Arganil e mais tarde em Gouveia, rara era a semana em que eu não me deslocava à região de Góis, só ou acompanhado pelos meus alunos, por motivos essencialmente culturais. Foi sobretudo na vigência do mandato autárquico do Dr. Armando Simões que os meus contactos foram mais assíduos e morosos, pois ele em pessoa partilhava do meu entusiasmo pelas investigações histórico-arqueológicas que eu vinha efectuando e promovendo no concelho. Foi a ele precisamente que, em dada altura, eu confiei uma série de artefactos com vista à organização de um museu na vila, artefactos esses que, posteriormente à sua presidência, acabariam por, em parte, levar sumiço. Viviam-se, então, momentos de euforia quanto ao papel a desempenhar por Góis no desenvolvimento cultural do centro do país, servindo de pólo catalisador o paradigmático boletim que, sob a designação de "Arquivo Histórico de Góis", o seu ilustre Pai fundara e competentemente dirigia, cabendo-me a mim o sector dos estudos de natureza arqueológica. Com a passagem da presidência do poder autárquico para o seu Tio, Dr. Rui Nogueira Ramos, esse febril entusiasmo não esmoreceu: foi ele, com efeito, que fez abrir um estradão de acesso à Pedra Letreira para facilitar e fomentar a visita ao monumento. Bons tempos esses em que a cultura era rainha e senhora da acção privada e da actividade autárquica do município goiense! Só tenho a dizer bem, pois colaboração e incentivos nunca me faltaram. Em suma, eram excelentes as minhas relações com o comum das pessoas e, particularmente, com as famílias mais representativas do meio social goiense, entre as quais a sua distinta parentela, os Nogueira Ramos, lado a lado com os Barreto Chichorro, os Barata Cortez, os Almeida e Sousa, os Paula Nogueira, os Silva Poiares, os Alves Melão, os Rocha Barros, os Pires de Carvalho, os Ribeiros, Sanches e Baratas, além de tantas outras que me escuso de citar, mas que nem por isso estão menos vivas e presentes no meu congratulado espírito.
JNR: Na História que outros escrevem sobre a região, o concelho de Góis é normalmente pouco referenciado, parecendo-me ser deixado propositadamente ao ostracismo, despropositado face ao seu passado. Pensa que há alguma razão relevante que justifique esse "esquecimento"? JCN: Olhe que não é tanto assim. Lembre-se, por exemplo, da divulgação que, através do "Arquivo Histórico de Góis", o seu ilustre Pai, o inesquecível Dr. Mário Ramos, deu aos factos e personalidades do senhorio goiense, boletim que no género foi modelo ao tempo e que hoje ainda constitui uma fonte de informação sem réplica em toda a região. De resto e prescindindo de bons escritores locais, como Francisco António Barata, há que realçar o notabilíssimo estudo do Prof. Vergílio Correia sobre a capela-mor que alberga o túmulo de D. Luís da Silveira e, mais recentemente, a dissertação académica do Dr. João Castro Silva sobre idêntica matéria mas em diferente perspectiva, sem que eu, responsável pela tese, dê por esgotadas as investigações a tal respeito. Ainda ficou muito por dizer! Nos concelhos vizinhos, exceptuando Arganil após a descoberta da estação arqueológica da Lomba do Canho, que aliás muito pouco parece ter dito à população arganilense, não se regista actividade comparável à de Góis, muito embora e face ao seu recente e remoto passado, fosse de esperar o contrário. Coisas de pouca monta. Creio, Senhor Engenheiro, estar na sua pessoa, mais que em outra alguma, dar continuidade ao que já foi dito e feito sobre a sua terra, a "nossa" terra, tendo em conta as suas qualificações e apetências pessoais para este género de estudos. E Góis merece-o!
JNR: Julgo que os petróglifos Pedra Letreira e Pedra Riscada foram "descobertos" e detalhadamente estudados por si, nos inícios da segunda metade do século XX. Na época, foi para si uma surpresa? Por outras palavras, marcou uma viragem na percepção que até então tinha do passado pré-histórico da região? JCN: Como noticio na correspondente monografia, editada pela Câmara Municipal de Góis a expensas do Instituto para a Alta Cultura (IAC) e da Casa do Concelho de Góis, foi no verão de 1952 que, por indicação do prospector das minas da serra da Lousã, travei conhecimento com a "Pedra Letreira", à Portela do Vento, nas proximidades da povoação dos Amieiros. Foi uma "descoberta" deveras surpreendente por, na altura, se desconhecer em absoluto qualquer manifestação do género no centro do país. Levei meia dúzia de anos a constatar inequivocamente a sua autenticidade, o que só viria a suceder, sem margem para dúvidas, quando na região hurdana, na província de Cáceres, foi revelada a existência de monumentos similares. Seguro da sua identidade, apresentei sobre as suas insculturas, em 1958, uma comunicação ao I Congresso Nacional de Arqueologia a cargo da Faculdade de Letras de Lisboa, passando desde logo o monumento a figurar em manuais e artigos da especialidade. Tirando as insculturas de Ridevides, em Trás-os-Montes, e a bancada de xisto de Molelinhos, nas cercanias de Viseu, evidentemente posterior, era o primeiro testemunho de arte rupestre a registar no território nacional compreendido entre as imediações do Douro e o curso do Tejo, com a particularidade de se tratar de petróglifos de natureza filiforme, de abrasão, o que presentemente constitui ainda uma evidência rara. Não foi muito depois que sobre as Mestras, na vertente das Malhadas, tive o ensejo de localizar um conjunto de outros petróglifos, que passei a designar por "Pedra Riscada", de diferente natureza do ponto de vista temático e técnico, mas igualmente sem paralelismo no centro do país, pois só depois surgiriam, no leito do Tejo, as numerosas e congéneres gravuras do Fratel. Com estas "descobertas" estava, pois, a modificar-se grandemente o panorama delineado pelo Prof. da Universidade do Porto, Doutor Santos Júnior, na sua abrangente comunicação apresentada em 1940 ao Congresso do Mundo Português sob a denominação de "Arte rupestre". Imagine, Senhor Engenheiro, o alvoroço que de mim se apossou relativamente ao seu estudo e divulgação, tarefa em que não me encontrei só! Com a "Pedra Letreira" e a "Pedra Riscada", esta dada à luz da publicidade pela Universidade de Luanda, abriu-se uma janela para novas e frutuosas investigações a respeito da complexa arte rupestre no território luso em paralelo com o que se passava, então, no país vizinho, designadamente na Galiza, em cujo estudo me foi dado participar lado a lado com os mais reputados especialistas na matéria. Que tempos esses, em que empenhei a minha juventude! Quanto a Portugal, foi em Góis que se verificou o surto pioneiro da retoma de tais estudos, verdade seja dita. E mais afirmo que ainda hoje, meio século passado, eu não retiraria uma linha ao que escrevi, salvo preferir prudencialmente a designação genérica de Pré-história Recente sem qualquer aleatória compartimentação terminológica, como vem sendo prática hodiernamente. Devo dizer-lhe, para terminar, que, muito embora o meu entusiasmo fosse ao rubro com estes inesperados elementos de índole arqueológica, eles não me acharam desprevenido, pois que apenas vinham corroborar, enriquecendo-o, o panorama que eu havia já traçado quanto à importância do concelho nos remotos tempos do passado face a outras fontes de informação em termos de artefactos e suas condições de jazida. Eram, só por si, indícios mais do que sobejos para fazerem desta zona do país uma região privilegiada nos domínios da indagação arqueológica, como em parte julgo ser do seu conhecimento pessoal. Força é reconhecer que, neste como em outros domínios da prospecção histórica e da vivência cultural, Góis assumiu papel de referência.
JNR: É de supor que na região haja outros testemunhos idênticos, que possam ser "descobertos"? JCN: Não digo que não. Só que, dadas as pesquisas que efectuei, quer directamente no terreno, quer inquirindo a população, com a qual quase familiarmente me relacionei, não se me afigura muito provável que se altere este estado de coisas, este cenário, se bem que há que ter em conta a pouca visibilidade que estas representações petro-glíficas oferecem por razão da matéria orgânica que sobre elas se desenvolve, quase as ocultando. Em todo o caso ou de qualquer forma, os petróglifos já localizados são mais do que suficientes para, pela variedade temática e qualidade técnica, colocarem o concelho de Góis, conforme já referi, num lugar cimeiro da caracterização da arte rupestre portuguesa, cumprindo realçar que o seu estudo constituiu, no centro do país, um trabalho pioneiro internacionalmente reconhecido. Se, entretanto, novos achados se vierem a verificar, tanto melhor: antes mais que menos! Serei o primeiro a me congratular, evidentemente.
JNR: Julgo que a primeira presença humana conhecida na região se situa por alturas do Calcolítico superior, em que a procura dos metais era um forte motivo de migrações. Com os conhecimentos entretanto obtidos e outros testemunhos encontrados, é crível que possa ter sido local de "uma longa e activa permanência humana", ou não terá passado apenas de uma zona de passagem para outras regiões? JCN: Uma coisa, desde já, lhe posso garantir: é que para trás da chamada Pré-história Recente não há no concelho de Góis e nos seus mais próximos vizinhos testemunho algum da presença do ser humano, devendo entender-se por essa designação, no caso particular que nos interessa, a fracção de tempo que do Calcolítico se estende ao Ferro Inicial, ou seja, o período genericamente conhecido pela era dos metais. Assim como linguisticamente se vem designando por paleo- -hispânicos todos os falares que estão para trás do latim, igualmente se vem adoptando, do ponto de vista arqueológico, a denominação terminológica acima referida, sem mais aleatórias particularizações que os dados actualmente disponíveis não nos autorizam a perfilhar. Quando muito, usemos o Bronze, nas suas múltiplas vertentes, como o eixo desse amplo horizonte cronológico. Prudencialmente. Posto isto, não me repugna admitir que, ao longo deste período, intencionalmente indefinido, a região de Góis terá sido, não tão- - somente lugar incontornável de passagem rumo a destinos outros mais apelativos, como local preferencial de "uma longa e activa permanência humana", conforme V. Exª refere, utilizando palavras minhas de há meio século e às quais, agora mais que nunca, não retiraria uma só letra. Mesmo sem a suficiente prova arqueológica concreta, ou seja, sem os correspondentes artefactos de índole arqueológica comprovativos, bastaria a corroborar tal asserção o panorama dos numerosos e portentosos vestígios da exploração mineira na região, tanto a céu aberto como em galeria. De dois a três milénios terá sido a duração dessa intensa pesquisa de recursos fundamentais para as novas exigências económicas e culturais de então, designadamente o estanho, inexistente para lá do território ocidental hispânico e indispensável para a obtenção do cobiçado bronze, base primordial de civilização. Pelos testemunhos recolhidos, eu quase me atreveria a considerar a região de Góis como a charneira das duas áreas do país dominadas pela abundância do cobre, ao sul, e do estanho, ao norte, zonas artefactualmente caracterizadas ou emblematizadas pelo machado plano, de cobre, e pelo de bronze, de aselhas e talão. Creio não estar exagerando, no fundamental. Em certo modo, deu-se em Góis a convergência. De resto, as aras romanas dedicadas à divindade ILVRBEDA, também testemunhada epigraficamente em Salamanca e Burgos, são a prova irrefutável da fixação no terreno de pessoas ou grupos populacionais provenientes de além-fronteiras com armas e bagagens. Vieram para ficar na companhia dos seus deuses. Isto é sintomático. Já reflectiu nas virtualidades desta constatação em termos exclusivamente etno-linguísticos?... Não serão os "beirões" os descendentes ou actuais representantes dos "beriones", textualmente localizados para as bandas de Burgos nos primórdios da romanização peninsular?... Deixo para as suas indagações a dissecação deste pressuposto, que me parece por demais evidente ou, pelo menos, muito convidativo para quem gosta deste género de estudos. A mim, já não me resta tempo para ir mais além!
JNR: A arqueologia pode ajudar a cimentar a herança de um povo. Se após essas descobertas, nos meados do século passado, as investigações pudessem ter prosseguido, poderíamos hoje ter uma panorâmica diferente das potencialidades sociais e culturais da nossa terra. Encontrou nessa época indiferença ou insensibilidade pela parte das autoridades, locais e nacionais, para o prosseguimento do estudo da região? JCN: Posso dizer-lhe afoitamente que, da parte das autoridades concelhias e até nacionais, nunca me foi regateado apoio, chegando o Dr. Armando Simões, na sua qualidade de presidente da autarquia, a associar-se aos meus trabalhos de campo, e o seu ilustre Tio, o Dr. Rui Nogueira Ramos, a mandar abrir um estradão de acesso à Pedra Letreira, cuja monografia foi custeada pelo Instituto para a Alta Cultura. Não tenho razões de queixa neste particular. Se as minhas investigações não prosseguiram no mesmo ritmo, ou seja, se abrandaram sem contudo se encerrarem em definitivo, foi porque entretanto descobri em Arganil, onde residia, a estação arqueológica da Lomba do Canho, que passou a polarizar as minhas atenções, dada a sua enorme relevância. Que pena, Senhor Engenheiro, ela não ter sido encontrada em Góis!
JNR: Góis parece ter poucos testemunhos da sua História para serem expostos e valorizar um espaço museológico. Julgo no entanto que, nas suas pesquisas, encontrou materiais interessantes e de valor. Onde se encontram agora? JCN: Esse foi em determinada altura o meu propósito, corroborado por Monsenhor Nunes Pereira, associado aos meus trabalhos, ocorrendo-nos a ideia de, alargando o conceito meramente arqueológico, o designarmos por Museu do Ceira por sugestão do que, numa viagem de estudo que efectuámos à Alemanha no final dos anos cinquenta, nos foi dado ver na cidade de Frankfurt relativamente à região do Reno. Era uma intenção firmemente assumida, chegando o executivo camarário a dar-lhe existência legal por proposta do Senhor António da Rocha Barros, que teve a gentileza de me propor para seu director. Tudo não passou do papel, muito embora eu tivesse então confiado ao Senhor Dr. Armando Simões, para esse efeito, alguns dos artefactos por mim recolhidos no concelho e que, entretanto, se terão extraviado. De então para cá nenhuma decisão em contrário foi tomada pela autarquia goiense, devendo pois considerar-se como ainda existente esse museu com a designação de municipal. Só falta dar-lhe vida. Acontece, porém, que para albergar os numerosos e valiosos materiais de índole arqueológica que posteriormente fui recolhendo em diversos outros concelhos da região beiroa, tomei a decisão de, para evitar a sua dispersão, criar e instalar na vila de Arganil o Museu Regional de Arqueologia, que teve uma duração efémera, mantendo-se o seu valiosíssimo acervo à guarda da respectiva autarquia em deficientes e precárias condições de dignidade e segurança, muito embora sob a minha responsabilidade. Caso a iniciativa venha a gorar-se definitivamente, é meu propósito fazer voltar a Góis o que a Góis pertence, para dar corpo ao seu tão sonhado museu na plena convicção de que, como V. Exª muito bem se expressa, "a arqueologia pode ajudar a cimentar a herança de um povo". É o seu arquivo sem suporte escrito e, por isso mesmo, mais fiável. Que pesaroso estou por, no caso do Museu Regional, não ter optado por Góis para a sua instalação! Questões de melindre tão-somente. Confesso, em todo o caso, que foi um desacerto. Góis, em termos de documentação arqueológica, não é tão pobre como isso. Tirando os materiais por mim recolhidos e momentaneamente integrados no acervo do projectado Museu Regional de Arqueologia, existe um apreciável contingente de artefactos no Museu dos Serviços Geológicos de Portugal, na cidade de Lisboa, em parte publicados pelos eminentes homens de ciência, Prof. Carlos Teixeira e Engenheiro Octávio da Veiga Ferreira. Mas há mais, inclusive no estrangeiro. Tomaram muitos concelhos à sua volta possuir, nos domínios da arqueologia, o que possui o de Góis, sendo de prever que novas e aturadas investigações acabem por dar frutuosos resultados. Veja que, exceptuando o desentulhamento de minas antigas, para outros fins, nunca se efectuou na área do concelho qualquer intervenção de natureza arqueológica propriamente dita. Nunca se procedeu a uma escavação. Tudo são achados meramente ocasionais. Já não serei eu a fazê-lo, evidentemente. Mas os serviços camarários dispõem, no presente momento, da pessoa adequada para levar a efeito essa magna tarefa. Tem todos os requisitos a seu favor: entusiasmo e competência, cultura, afabilidade e bom senso, comedimento e objectividade, para além de entranhada ligação afectiva à região goiense, bem como plena disponibilidade e garantida proximidade às zonas de intervenção no terreno. Assim saiba a autarquia tirar proveito da sua distinta funcionária, a Arqueóloga Drª Ana Marques de Sá, que em boa hora surgiu nos horizontes culturais do senhorial e vetusto concelho de Góis, que pelo matrimónio considero também ser terra minha!
JNR: Se Góis tivesse oficialmente um museu - que julgo ser uma instituição de grande importância para o progresso de uma terra com as características de Góis - poder-se-ia reivindicar as peças e documentos que eventualmente se encontram noutros locais? JCN: Pelo que a mim me diz respeito, Senhor Engenheiro, nada me seria mais grato. Quanto ao resto, não deixo de reconhecer… haver dificuldades, não intransponíveis, mas quase. É preferível olhar para diante, sem reivindicações extemporâneas e, no fundo, indesejáveis. Às instituições que têm tido a seu cargo a salvaguarda e valorização de "peças e documentos" respeitantes ao concelho, só há que agradecer e com elas colaborar. Na minha perspectiva.
JNR: Se pudesse voltar uns anos atrás e aceitasse trabalhar em Góis, na sua área, que projecto abraçaria com maior entusiasmo? JCN: Põe-me V. Exª uma questão para a qual não disponho de resposta fácil, até porque a minha área não é exclusiva e restritivamente a arqueologia, mas a filologia no conceito germânico e abrangente do termo. Humanista, se quiser ou como eu pretendo ser e me comporto. Por isso, se pudesse voltar atrás e dispusesse dos adequados meios, o que eu faria ou teria feito pelo e no concelho de Góis, é mais do que evidente, desde os estudos linguísticos à pré-história, passando pela arqueologia propriamente dita e pela etnologia, divagando pela antropologia, em suma, sem deixar de abordar aspecto algum da actividade humana em recuados tempos. Só que… "com águas passadas não mói o moinho"! Projectos que fui sonhando e que outros, em melhores condições de tempo e lugar, terão o ensejo de, no todo ou em parte, levar por diante. Matéria e motivações não faltam. Creio chegada a altura de alguém assumir o encargo. Daria para encher uma vida!
JNR: Que sugere aos das novas gerações para o desenvolvimento de Góis? Fugindo aos triviais que se perfilam um pouco por toda a parte, que projectos específicos acha que poderão ter impacto na região? JCN: Do meu ponto de vista e sem me afastar das áreas em que academicamente me movimento, eu, sonhando alto mas com suficiente realismo, bater-me-ia, caso me fosse dado esse ensejo, pelos seguintes objectivos que julgo de imprescindível e prioritária realização: a) imediata instauração do ensino secundário e, a breve trecho, do superior sob a alçada da Faculdade de Letras de Coimbra ou da Clássica de Lisboa na modalidade de um centro ou instituto de estudos quinhentistas, a instalar na Casa das Ferreirinhas, uma vez convenientemente reconstruída e posta ao serviço da cultura; b) ultimação das obras de conversão do antigo Hospital em Museu Municipal, não essencialmente arqueológico mas de lembranças da mais variada índole histórico-cultural, com reserva de duas a três salas para a exposição, em reproduções à escala natural, das manifestações de arte rupestre do concelho; c) beneficiação, em termos urbanísticos de pormenor, da vila de Góis com vista à sua candidatura a património da humanidade, reatando as diligências já efectuadas durante o mandato do Dr. José Cabeças com o pessoal empenhamento do seu falecido Irmão, o Engenheiro Manuel Nogueira Ramos, diligências essas que motivaram, para esse efeito, a deslocação a Góis do Arquitecto Prof. Doutor Nuno dos Santos Pinheiro, Presidente da Unesco para Portugal e o Magreb, bem como a assinatura de um protocolo preliminar; d) reabilitação inadiável da capela-mor da igreja matriz visando, em especial, o tratamento adequado da pedra do túmulo quinhentista, em adiantado processo de aviltamento, e a reparação das valiosíssimas tábuas ou painéis coevos integrados na posterior e actual composição do altar-mor; e) criação de um "chantier d'école" para a prática da arqueologia no concelho, preferentemente na Eira dos Mouros, ao Liboreiro, ou nas Covas dos Ladrões, na Portela do Vento (Cabeçadas), imediações da Pedra Letreira; f) divulgação, por todos os meios, do património móvel e imóvel, tanto da vila como das demais povoações do concelho, como razões de atracção turística circunscrita a uma camada da população particularmente sensível a este género de fruição cultural; g) exploração, a nível de ensino, publicações e palestras locais, do relevante papel que a sociedade goiense desempenhou no contexto da história nacional, pondo em destaque determinadas personagens que, mais se distinguindo, deram azo às páginas melhores das letras portuguesas, como é o caso dos "Lusíadas", passando à pedra, nos jardins, alguns dos respectivos trechos; h) dentro do chamado e consagrado padrão de Coimbra, dar como adquirido, mesmo sem chancela oficial, o facto de Góis ser a zona do país onde melhor se fala a língua portuguesa, inquestionavelmente. Aqui tem, Senhor Engenheiro, alguns dos "moinhos de vento"contra os quais eu estaria disposto a quebrar lanças a peito descoberto!