Foi nas indagações a que, no verão de 1950, procedi nas imediações do Liboreiro, a nordeste de Góis, que tive o ensejo de adquirir o presente objecto, aparecido, juntamente com a folha de um machado de talão, numas terras de cultivo pertencentes ao sr. Claudino Martins, de Piães, e situadas ao fundo da vertente da Devouga, na margem direita da ribeira que ali corre, a uns 200 m da Eira dos Mouros. Oferecido pelo signatário ao Museu da Câmara Municipal de Arganil, então em formação, trata-se de um machado plano que, por falta de análise, ainda não se sabe ao certo se é de bronze ou cobre, não obstante a primeira notícia do achado, em que o dei como deste último metal. Apesar do aspecto rugoso que tem, o seu estado de conservação é razoável, a excepção do gume que, por haver sido repetida e violentamente golpeado, apresenta diversa e profundas incisões, testemunho assaz eloquente de quem, na gula do ouro, tão barbaramente o maltratou. Pesa 350 g e são as seguintes as suas dimensões: comprimento ao longo do eixo longitudinal - 104 mm; largura no fio - 54 mm; largura na parte oposta ao fio, ou seja, no topo - 26 mm; espessura máxima - 14 mm. Entre os bordos laterais (8,5 mm de espessura máxima) e a zona entre eles compreendida (7 mm de espessura mínima) há, na parte oposta ao fio, uma diferença sensível de espessura que vai gradualmente diminuindo para o corpo do machado, o que lhe imprime em cada face uma ligeira depressão central, no sentido do comprimento, sugerindo um processo de encabamento idêntico ao dos machados de talão. Tipologicamente, achamo-nos diante de um machado plano, sub-rectangular, atribuível ao Eneolítico Pleno ou Bronze, o que não quer dizer que, cronologicamente, não possa datar do subsequente período da época do Bronze, correspondente à cultura de El Argar no sudeste espanhol, pois como muito bem observa o sr. Prof. Maluquer de Motes, tais “hachas” correspondem “al tipo generalizado en toda Europa durante el primer período de la Edad del Bronce y que en Espana (y Portugal) continúan como características en todo el Bronce II, de ahi que muchas veces se las cite como hachas argáricas sin que tengan nada que ver com esta facies concreta de nuestro sudeste peninsular”. Por isso lhe chamei de tradição eneolítica, abstraindo por completo do conceito cronológico inerente ao termo, aqui usado pois no sentido meramente tipológico. Nada melhor do que, a propósito, citar as seguintes considerações de P. Bosch-Gimpera acerca da evolução e caracterização da chamada cultura de El Argar, na zona de Almeria: “La sustitución del utillaje de piedra por el de bronce le da, naturalmente, um aspecto nuevo, pero en sus tipos, como en los de la cerâmica, se acusa el carácter conservador de la cultura de Almeria, que continúa dichos tipos sin apenas modificaciones sensibles. Este es le caso, sobre todo, de las hachas planas, que continúan durante todo el desarrollo de la cultura de Almeria, diferenciandose en un princípio muy poco de las eneolíticas, y solamente adoptando en los períodos más avanzados un corte que forma un arco más pronunciado.” Isto, no presente caso, é tanto mais exacto quanto é certo que, na região das Beiras, e, de um modo geral, no noroeste peninsular, “el verdadero argárico no existe fuera de algunas exportaciones mertalúrgicas”, reinando hodiernamente a impressão de que em realidade o período correspondente ao Bronze II decorre, no centro do país, num autêntico ambiente de Bronze Inicial, que parece perdurar até às primeiras manifestações do Bronze III, com as quais é provável tenha chagado a coexistir. Assim sendo, não há porque estranhar o facto de, apesar de se tratar de espécies tipologicamente tão distintas, o presente machado plano ter surgido associado ao machado de talão de surto atlântico, a que intencionalmente aludi no começo desta nota. Há mais casos similares. O que, porém, confere a este um interesse muito especial é a circunstância de ele se verificar exactamente num local que já tem proporcionado alguns outros elementos de feição eneolítica, não se tratando por conseguinte de um achado arqueológico isolado. É o caso da mina pré-histórica de Eira dos Mouros, a que já algures me referi, e em cujas galerias têm sido recolhidos, além de outros objectos menos característicos, diversos machados de pedra polida (xisto anfibólico), de evidente caracterização eneolítica, sendo portanto lógico supor estarmos em presença realmente de um mesmo complexo cultural determinado por um Bronze I de larga duração local. Também não deixa de ter o seu interesse o facto de o centro do país oferecer uma apreciável mancha lacunar na distribuição geográfica deste tipo de machados, mancha que o exemplar do concelho de Góis vem por certo reduzir. Enfim, se a isto acrescentarmos a extraordinária riqueza que, tanto no que respeita ao Bronze Inicial ou Eneolítico Pleno, como no tocante ao Bronze Final ou Atlântico, as minhas recentes investigações têm revelado existir na área da comarca, impõe-se desde já concluir que, ao contrário do que se tem vindo sistematicamente supondo e afirmando, não é toda ela pobre em manifestações da Arqueologia do Bronze a região do distrito de Coimbra. O que não tem havido é quem as investigue, estude e valorize.