O mais notável monumento gótico do Alto Distrito de Coimbra, assim escreve Vergílio Correia, numa descrição pormenorizada que faz desta capela. Foi mandada executar por D. Luís da Silveira, para servir de sua sepultura e de sua família. Mostra-nos uma faceta daquele que foi um dos Senhores que mais prestigiou Góis, quer pela sua personalidade, quer pela obra que realizou. Homem da corte, de confiança do rei, embaixador junto de Carlos V, guerreiro, diplomata, culto, poeta, espirituoso, bon vivant, este trabalho evidencia também o seu espírito de empreendedor e organizador de obras de valor e de beleza, algumas ainda visíveis, aquelas que os vindouros deixaram de pé. Porque outras houve na nossa vila, que outros se encarregaram de deitar abaixo, por dinheiro ou espírito tacanho.
Luís da Silveira teve três cuidados. Primeiro, faz testamento, com indicações para o caso de falecimento prematuro, que a sua saúde já não era a de um jovem e mais valia prevenir. Deixa claro onde devia ficar a sua sepultura, a dos pais e as dos familiares passados e vindouros, e outras coisas mais. Depois, a escolha dos artistas. O responsável máximo pela execução de tudo (a capela, o túmulo e os paços novos, para poder residir em Góis) foi o mais cotado na época, Diogo de Castilho. Castilho vivia em Coimbra, que, juntamente com Lisboa e Évora, eram as cidades mais favorecidas pela corte. Tinha sido mestre dos paços reais e do mosteiro de Santa Cruz dessa cidade, para além de outras obras no distrito. Possuía mesmo autorização para andar de mula e de faca, passada por carta régia, de modo a melhor movimentar-se entre os vários locais. Escolhe para seus principais colaboradores, Diogo de Torralva, “mestre das obras del rei”, que se julga tenha traçado os planos gerais de toda a obra, e o mestre Nicolau Chanterréne, também já seu parceiro de outros trabalhos e a quem é pedido para fazer o desenho da sepultura. É da conjugação da acção destes três famosos artistas, que é erigida a capela. Está-se na segunda metade da época em que se desenvolveu a arte do renascimento e é aproveitada a experiência de obras idênticas já efectuadas. Em terceiro lugar, o contracto das obras. No qual nada é deixado ao acaso, com os cuidados de um caderno de encargos de obra pública dos tempos actuais. Desde os materiais a utilizar aos pormenores de execução, do preço ao prazo e modo de pagamento. E tudo parece ter corrido bem. O testamento foi assinado em 22 de Março de 1529, o contrato em 10 de Abril de 1529 e o trabalho concluído provavelmente em 1531, data que está gravada na janela por cima do túmulo. Foi feita na fase final da sua vida, quando, desterrado em Góis, poetava e pescava nas margens do Ceira, “matando o tempo”,
…e foi-se a uma vila sua chamada Góis. Estando ele pescando em uma ribeira à cana, passou um homem e perguntou-lhe se picava o peixe; e o conde respondeu-lhe: - Homem, eu pesco tempo e não peixe…
Dedicou-se a esta obra com o maior entusiasmo. Certamente para o imortalizar perante a História e os vindouros, mas também, porque não, para fazer ver ao seu rei e àquela corte intriguista e maldizente, quanto injusto tinham sido para ele, originando o seu afastamento para o campo, para a bucólica vila dos seus antepassados. A capela-mor foi bem a cereja final da sua vida, de uma vida muito vivida. É um monumento para ser contemplado e não para ser aqui descrito. Mas valerá a pena chamar a atenção para alguns detalhes.
A capela O tecto é nitidamente do estilo gótico, com uma roseta de nervuras, em que os remates das abóbadas estão lavrados com as armas da família Silveira, bustos, folhagens e florões. Mas pelo exterior também o era, nomeadamente com ameias e gárgulas, semelhantes ao castelo de Góis, construído na mesma época. Só que, com o tempo e as obras de restauração que foram feitas, desapareceram as ameias e, das gárgulas, julgo que se notam ainda vestígios de algumas. A planta tem um corpo quadrangular, ligada a outro trapezoidal:
Mas em obras feitas posteriormente, a colocação de uma armação de madeira entalhada, no fundo do santuário, veio encobrir uma parte das nervuras, não deixando ver toda a construção. Nesta armação foram depois adaptadas quatro pinturas antigas, as de S. Paulo e Assunção da Virgem, no lado esquerdo, e as de S. Pedro e Adoração dos reis Magos, no lado direito. Por cima, no arco, uma serie de seis painéis em mau estado, com pinturas julgadas de pouco valor. a construção da capela foi utilizado material da região, o arenito da Várzea, um grés avermelhado, que transmite à capela uma tonalidade particular, apropriada ao recolhimento. Já os fechos brasonados seriam lavrados em Pedra de Ançã, dos lados de Coimbra, propocionandoum melhor acabamento. No lado direito da capela, estão dois arcosólios, cada um deles com uma arca tumular, de ossadas de seus antepassados. Uma delas é do seu trisavô, Gomes Martins de Lemos. Fora casado com Mécia Vasques de Góis, herdeira das terras de Góis, que, tendo ficado viúva muito cedo, seria, não apenas a primeira mulher à frente do senhorio, mas também como uma das suas personagens mais interessantes de toda a história de Góis. No solo, encontra-se uma campa rasa, onde foram depositadas as ossadas de seus pais Nuno Martins da Silveira e Filipa de Vilhena, de acordo com o desejo do pai. Ao que parece, as ossadas foram removidas, aquando de obras feitas no pavimento, no século XIX, depois de aberta a campa e alterada a pedra da sepultura, picando-se parte do seu relevo, para comodidade dos fiéis. À boa maneira portuguesa… No lado esquerdo, o túmulo de D. Luís da Silveira.
O túmulo
Vale a pena observar com vagar este monumento, vendo-o constituído por quatro secções: a arca tumular, a caixa onde se ajoelha Luís da Silveira, a volta do arco com óculos e nichos laterais, e, como quarta secção, a janela. E, em cada um delas, deliciar-nos com a delicadeza de todo o lavor. Dos anjinhos do túmulo à ornamentação das pilastras; das feições da estátua, à Assunção da Virgem acolitada por seis anjos; dos bustos de um homem e uma mulher nos óculos, aos nichos laterais, de onde foram retirados duas belas esculturas, dois santos bispos, que julgo (espero) ainda se encontrem à guarda da igreja; da janela ornamentada, às duas figuras femininas nuas, ladeadas de outras no interior de pequenos nichos. A pedra usada, por pedido expresso de Luís da Silveira, foi a de Ançã, utilizada já noutras belas obras no distrito. Uma pedra alva, cuja maleabilidade e macieza permitia um requintado lavrado. O túmulo é uma autêntica maravilha… O lavor dos dois pares de pilastras pode considerar-se uma das mais delicadas obras da escultura renascentista em Portugal, continuando a citar Vergílio Correia. Segundo conjectura de João de Castro Nunes, é de crer que terá sido "feito do natural, em presença, que o artista lhe tirou as feições do rosto e lhe talhou as mãos, tal o realismo da representação" (ver Nota). Noutra sua conjectura, "no painel dos Magos, o grande senhor é, na minha versão, a personagem enroupada que, em primeiro plano e sem coroa, adora o Deus-Menino" (ver Imagem abaixo).
Diz-se (o "nosso" António Francisco Barata já o afirma num dos seus livros) que Dom Luís da Silveira tinha mandado colocar o seguinte epitáfio, na quartela da caixa tumular (que agora está sem qualquer inscrição):
Aqui jaz Dom Luís da Silveira, primeiro Conde de Sortelha, que enquanto viveu nunca falou com Pero Correia.
Pedro Correia foi o seu substituto junto da corte de D. Carlos V, quando Luís da Silveira regressou a Portugal. Ao que se julga, teria sido intriguista junto do rei e um dos causadores da perda da confiança real no seu valido Luís da Silveira e, consequentemente, da sua vinda para Góis. Histórias ou historietas que se contam, que a imaginação do homem é prodigiosa. Mas, se verdade assim foi, abençoado seja esse Pedro Correia…
Nota Para mais informações: Arquivo Histórico de Góis (pp. 157 a 170); Um Túmulo Renacença - D. Luís da Silveira, de Vergílio Correia e Diário de Coimbra de 14 e 28 de Setembro de 1936; D.Luís da Silveira, Senhor de Góis, de João de Castro Nunes, Revista MUNDA, nº 40.