O fabrico de gelo, a partir de neve, foi uma actividade a que alguns goienses se dedicaram, pelo menos nos séculos XVIII e XIX.
A Real Fábrica do Gelo, na serra de Montejunto, hoje monumento nacional, com construção iniciada em 1741, era uma inédita fábrica em Portugal. Destinava-se a fornecer gelo a Lisboa, tanto a comerciantes e hospitais, como à Casa Real, apreciadora de gelados e bebidas frias, hábitos que, segundo reza a História, teriam sido introduzidos na corte por Filipe II. O gelo ali produzido e armazenado descia a serra em dorsos de burros e em carroças até ao rio Tejo, seguindo depois em barcos até ao Terreiro do Paço, onde se situava a Casa das Neves, que mais tarde seria o Café Martinho da Arcada, que o comercializava. A laboração desta fábrica terminaria nos finais do século XIX.
Uns dos abastecedores da Real Fábrica eram os neveiros do Coentral, do vizinho concelho de Castanheira de Pêra, a partir da neve depositada na denominada Serra do Pereiro ou Serra da Neve. O seu campo de acção situava-se na extrema com o concelho de Góis e muitos goienses partilhariam este negócio com os castanheirenses. O mais conhecido dessa época foi Julião Pereira de Castro, do Coentral, que explorou o fabrico do gelo com alvará real, sendo proprietário de vários poços de armazenagem de neve, dos quais restam vestígios de três, agora considerados Imóveis de Interesse Público pelo município de Castanheira de Pêra. Viria a construir a capela de Santo António, em 1786, conforme lápide que se encontra na sua fachada, capela curiosamente situada, segundo os marcos geodésicos actuais, na linha divisória que divide os dois concelhos. « Fronteiros a esta capela estão os três poços que nos restam. Eles exibem ainda o tosco das suas construções. Dois deles são octogonais e o terceiro é circular. Mas, no seu interior, são todos bem redondos. Estão cobertos por abóbadas de pedra em forma de sino achatado e todo o conjunto foi edificado com a pedra negra da região. Cada poço tem uma só porta, estreita, virada para nascente, como que para evitar que, quando o sol é mais forte, possa entrar pela estreita porta e derreter a neve ali guardada. Imaginem a azáfama que por aqui se desenvolvia desde o inverno até ao tempo quente... Afadigava-se o mulherio e os garotelhos a apanhar neve para as cestas. Utilizando escadas de mão, feitas em tosca madeira, os homens desciam ao fundo destes poços — que então tinham uma profundidade superior a uma dezena de metros — e, à medida que neles iam sendo despejadas as cestas com neve, iam calcando esta com pesados maços de madeira que empunhavam vigorosamente, à maneira dos calceteiros de hoje. Empedernida, isolada entre os paredões alisados pelo estuque, coberta depois com palha e fetos, a neve conservava-se, nesses amplos reservatórios, até ao verão, sem que uma réstia de sol lhe pudesse chegar. A jorna, eram contratadas mulheres e rapazio do Coentral e de outras aldeias vizinhas. É o caso dos Poborais… (…) Entretanto, para reforço da produção, as enxadas iam rasgando as Alagoas que eram, afinal, uns largos tabuleiros artificiais onde a água das chuvas ficava empoçada para depois vir a transformar-se em gelo. Ainda hoje se podem localizar algumas dessas Alagoas por entre lousas quebradiças e urzes rasteiras. Mas a maior parte delas desapareceu quando, em 1971, foi ali construída para pista de aviões para se acudir aos incêndios da floresta. » (Os Neveiros, de Herlânder Machado)
Provavelmente o fabrico do gelo na nossa região será anterior a esta época, conforme opinião do Dr. Herlânder Machado, que se dedicou à história da actividade dos neveiros no nosso país. Segundo a sua palestra "Os Neveiros de Sua Majestade", em 13 de Junho de 1986, aquando da passagem do duplo centenário da capela, proferida no próprio local: « Foi, pois, construído este templo [a capela] no ano do reinado de D. Maria I. Mas estes poços neveiros são seguramente muito mais antigos. Estamos mesmo em crer que eles são muito anteriores a Julião Pereira de Castro, de quem só há notícia devidamente documentada a partir de 1757, em alvará de el-Rei Dom José I, também assinado pelo Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal. Como se verifica pela inscrição da lápide que se pode ler na fachada da Capela de Santo António da Neve, Julião Pereira de Castro ainda era neveiro da casa real depois de decorridos 29 anos sobre a data, 23 de Junho de 1757, em que el-Rei Dom José I o nomeou para esse cargo. É um facto relevante que, todavia, não me impede de pensar que antes e depois de Julião Pereira de Castro há uma longa história digna de ser contada.»
« (…) Aliás, parece ser muito antiga a prática da utilização da neve e do gelo para refrescar bebidas e fabricar doces gelados. E autores há que defendem ser devida aos árabes a iniciativa deste aproveitamento. Assim parece de facto... Seja como for, sabe-se bem que, em Portugal, figura a neve entre os produtos dados espontaneamente pela natureza que foram aproveitados pelo homem, na Serra da Estrela, na Serra de Montejunto e na Serra da Lousã-Coentral. Se atentarmos, entretanto, na continuidade da cordilheira que apresenta em ligação as serras da Estrela, de Açor e da Lousã, compreenderemos de imediato as razões por que, nos documentos históricos chegados ao nosso conhecimento, se aluda sempre à neve da Serra da Estrela, quando é certo que a maior parte da neve que chegava a Lisboa provinha da Serra da Lousã. Sendo certo, como vimos nos versos de Tirso de Molina [O Burlador de Sevilha, em que se descreve Lisboa], que já se vendia neve, nas ruas de Lisboa, em 1615, é óbvio também que a organização oficial da actividade dos neveiros só mais tarde se formaliza, através de contratos com privilégios e condicionalismos.»
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Que relevância teve esta actividade no concelho de Góis, nomeadamente antes do alvará de Julião Pereira de Castro e dos neveiros de Coentral? Documentalmente, apenas temos conhecimento dos séculos XVIII e XIX, mas é de considerar que já existisse em tempos precedentes.
O professor Virgílio Correia, da Faculdade de Letras de Coimbra, divulgaria, em 1936, um interessante documento datado de 1769: "Nomeio a Simão Duarte e José Duarte, do lugar dos Poboares, termo de Góis, para irem ajuntar à Real Fábrica que se acha no Cabeço do Pereiro, serra da Lousã, e para esses avisarem os mais do lugar do Coentral para acudirem a ajuntá-la, por ficarem os ditos à vista da serra e verem quando cai a dita neve como também para irem ver a miúdo que não haja algum prejuízo na dita fábrica causado pelos pastores ou pessoas que passem, que não quebrem telhas dos telhados ou outro qualquer prejuízo para logo que suceda se prover de remédio e para o que lhe concedo todos os meus poderes que neste alvará que são concedidos para Sua Majestade, para que em meu nome possam requerer a todos os Ministros e Oficiais de Justiça e Guerra ou Fazenda, tudo o que preciso for para a boa conservação da neve da dita fábrica. Coentral, 29 de Janeiro de 1769. Julião Pereira".
No Tombo de 1799, pode-se ler que o donatário de Góis, Pedro de Lencastre, marquês de Abrantes, em 5 de Maio de 1794, aforou a Julião Pereira de Castro, o cabeço do Trevim, Lomba do Mouro, Selada dos Salgueiros Cimeiros, Cabeço de Agua e Celada do Zaguncho, tudo na Oitava, por uma arroba de neve, posta na corte, quando por ele pedida.
Também Mário Ramos, no seu Arquivo Histórico de Góis (p. 103-106, fasc. 7-9) refere documentos do seu arquivo pessoal, sobre requerimentos feitos à Câmara Municipal de Góis para aforamento de terrenos baldios na Serra do Pereiro, nomeadamente junto à Capela de Santo António da Neve, destinados ao trafico de neve.
Provavelmente esta actividade daria origem à famosa feira que, naquele planalto (planalto "Santo António da Neve” ou "Cabeço do Pereiro"), se realizava anualmente a 13 de Junho. Um evento de comércio de géneros e de gado, atraindo populações serranas, algumas de zonas bem distantes, e que era pretexto para convívio animado. Já recentemente seria implementado, no mesmo local, o “Encontro dos Povos Serranos”, agora no segundo sábado do mês de Julho, razão também para grandes romarias. .