Iminente batalha nas várzeas de Vila Nova do Ceira
A situação política no país Recordemos a situação política que se vivia no país, nesses tristes anos 40 do século XV. Quando D. Duarte morreu, em 9 de Setembro de 1438, menos de um ano após o desastre de Tânger, seu filho D. Afonso V, herdeiro do trono, tinha seis anos. O seu irmão D. Pedro viria a ficar regente do reino, até o sobrinho atingir os 14 anos, a maioridade para a governação. O Infante D. Pedro, duque de Coimbra, foi uma das personalidades de maior prestígio da nossa História medieval e renascentista. Empreendeu uma longa viagem de investigação e estudo, ao longo de uma dezena de anos, pela Europa, da Inglaterra à Hungria, e pelo Oriente, tomando contacto com as estruturas sociais e as principais Cortes europeias e bebendo das melhores fontes do saber. Era pessoa culta, sensata e respeitada, cá dentro e lá fora. Nos seis anos que esteve como regente, deixou a sua marca de estadista: manda iniciar o povoamento dos Açores; estimula as navegações, concedendo ao Infante D. Henrique, seu irmão, o monopólio da navegação, guerra e comércio das terras para além do Cabo Bojador; funda em Coimbra, um novo Estudo Geral, uma universidade reformada, para o ensino de leis, teologia e artes, dotando-a de rendas próprias; promulga as Ordenações(que ficaram conhecidas como afonsinas, por serem do tempo de D. Afonso V), que, na prática, seriam o primeiro código civil português. Mas esse curto espaço de tempo de regência vem a ser muito conturbado, instalando-se uma grande crise política. Foi um período de desavenças, de torpes intrigas, de traiçoeiras conjuras, que daria origem a uma guerra civil. Em 1943, D. Pedro perde seus irmãos, D. João, por doença, e D. Fernando, no seu martirizado cativeiro em Marrocos. Dos outros irmãos, sobrava-lhe D. Henrique, envolto na sua paixão marítima, em Lagos, longe da política, e D. Isabel, casada com Filipe, o Bom, duque da Borgonha, também bem longe, em Bruges, enquanto a rainha viúva D. Leonor, sua cunhada, fútil e irresponsável na governação, andava fugidia por terras de Espanha, onde morreria, em Toledo, em 1445. Dos filhos de D. João I, os da “Ínclita Geração”, D. Pedro era pois o único a lutar por uma política adequada às ambições do nosso país quatrocentista, que se queria abrir ao mundo. Perante um reizinho fraco, de espírito mole, permeável à lisonja e à insinuação malévola, que marcaria aliás todo o seu longo reinado de quarenta e três anos, e rodeado de uma nobreza que sentia estar a perder os seus privilégios, na tendência de concentração do poder em rei absoluto, que se desenhava na época renascentista, D. Pedro esforçava-se por manter uma regência dentro de princípios honestos e justos. Em 15 de Janeiro de 1446, D. Afonso V atinge a maioridade e dá-se a transferência formal de poderes para o jovem rei. D. Pedro, depois de lhe ter dado apoio, a quem sempre fora leal, retira-se para os seus domínios, terras do seu ducado em Coimbra, longe da ribalta e da política, em ambiente sossegado para projectos e estudos. Mas vai amargurado. Amargurado, por ter caído no desagrado do rei, seu sobrinho e genro, e pelas calúnias e intrigas palacianas que se fizeram à sua volta, em reacção á sua actuação política durante a regência do reino. Os nobres consideravam um inimigo a abater. Entre eles, o conde de Barcelos e duque de Bragança, o seu meio-irmão D. Afonso. D. Afonso era filho bastardo de D. João I, fruto de amores na sua vida de solteiro. Tornou-se o homem mais rico do país, casou com a filha de Nuno Álvares Pereira e fundaria a Casa de Bragança, a mais poderosa casa fidalga, depois da Casa Real. Mas isso não lhe satisfazia a ambição de ter mais poder no país. Ressentido de não ser filho legítimo, recalcado, tornara-se vingativo e depois violento. Apesar da sua idade, não perdia qualquer oportunidade para criar conflitos no seio da família real, para tirar proveito próprio. Tudo fez para aniquilar D. Pedro, que, pela sua estatura intelectual e moral, era quem mais o obscurecia. Tornou-se a voz da reacção dos nobres senhores, o cabecilha dos conjurados. Astuto, a sua arma principal era a dissimulação no seio dos seus irmãos e da cunhada rainha, que ele acabaria por abandoná-la na desgraça, e no aproveitamento das fragilidades de um jovem rei, joguete nas suas mãos. Foram estes dois meios-irmãos – D. Pedro, duque de Coimbra, então com cinquenta e sete anos e D. Afonso, duque de Bragança, com setenta e dois anos – que estiveram em vias de se defrontarem nas várzeas do nosso rio Ceira.
O senhorio de Góis Em 1444, morre, na sua casa do Pombal, em Góis, a donatária Mécia Vasques de Góis, uma das personalidades de maior relevo de Góis, durante a Baixa Idade Média. Era viúva de Gomes Martins de Lemos, fidalgo da Corte, colaborador próximo de D. João I e dos seus filhos infantes, fazendo parte do conselho régio. Viúva muito nova, sozinha governaria o senhorio e educaria os seus cinco filhos. D. Mécia tinha herdado uma grande fortuna, quer em propriedades quer em dinheiro, e não negligenciava os negócios, nomeadamente fazendo investimentos nas praças financeiras italianas, junto de grandes casas bancárias. Nas suas ajudas financeiras, saliente-se a que foi feita ao Infante D. Henrique (certamente para os seus projectos marítimos, para os quais ele tanto necessitou de apoio financeiro), pela qual, ele ficaria a pagar a D. Mécia, anualmente, a quantia de 19000 reais brancos. Eram boas, pois, as relações de D. Mécia de Góis com os infantes da Casa Real. Com a sua morte, os dois filhos mais velhos vão travar uma longa luta pela posse do senhorio, luta essa que já vinha desde da morte do seu pai. Fernão de Goes, o mais velho e o natural sucessor, designado aliás em testamento pela sua mãe, toma posse do senhorio, numa altura em que D. Pedro era o Regente do país, o que seria confirmado por D. Afonso V, quando este assume o poder. O outro irmão, Gomes de Lemos, continuou contestando. E, mais tarde, aproveita-se da guerra política entre D. Afonso V e D. Pedro, para convencer o rei em dar o dito por não dito, isto é, em lhe conceder o senhorio de Góis. O jovem rei, pouco escrupuloso e de espírito deformado, não hesita: era mais um fidalgo a combater ao seu lado contra D. Pedro, além de que as terras de Góis pegavam mesmo com a do ducado de Coimbra, de seu tio… Assim, em Julho de 1448, e depois de ter “cozinhado” uma justificação jurídica, D. Afonso V retira o senhorio de Góis a Fernão e dá-lo a Gomes de Lemos. As terras de Góis estavam agora bem seguras do lado de D. Afonso V. Desconhece-se a posição de Fernão Goes neste contexto, embora venha a aparecer depois em Alfarrobeira também do lado do rei.
A proximidade da batalha Com a saída de D. Pedro para Coimbra, a camarilha aperta o cerco à volta do rei. Os inimigos, que ele fizera com os seus actos de justiça, não lhe perdoavam e incitavam o jovem monarca para o seu derrube. Uma conspiração é urdida nos paços reais. Nas guarnições de muitas vilas e castelos, foram colocados pessoas afectas ao rei, soprando-se intrigas e deturpações maliciosas contra D. Pedro. Por quase todo o país, sopravam ventos contra a sua pessoa. Não pretendendo aqui fazer História, até porque é matéria que dá para muitas divagações, face ao desencontro de opiniões manifestadas por quem se debruçou sobre o assunto, deixamos aqui apenas os pontos principais. Estamos em Abril de 1449. D. Afonso, duque de Bragança, que se dirigia de Chaves para a Corte, em Santarém, com as suas tropas (uma “numerosa escolta”), pretende atravessar as terras de D. Pedro. Este, em princípio, não coloca obstáculos à passagem do irmão, mas entende que ele vinha em som de guerra, pelas tropas que trazia, o que considera uma provocação. Sendo assim, mandou-o prevenir que não lhe permitia a passagem. E, acautelando-se para possíveis intenções do irmão, reúne as suas tropas em Penela. D. Afonso atravessa o Mondego, talvez vindo de Trancoso a Celorico da Beira, seguindo o rumo da actual Estrada da Beira. Para evitar a proximidade de Coimbra, atravessa o rio Alva e segue por Coja e Góis, dando a entender continuar por Lousã, Miranda e Penela, estas três últimas, terras do duque de Coimbra. D. Pedro aprestou as suas tropas e seguiu-lhe ao encontro até o limite da sua área. « O ponto de Vilarinho, onde se fortificara D. Pedro, fechava a passagem ao Duque (…) D. Pedro avançou mais, obra de uma légua, sobre Serpins, porque do lado oposto o Duque de Bragança descera até à Várzea (...) “No vale do Ceira, D. Pedro a jusante, o duque a montante, estavam a menos de uma légua afastados (...) ambos acampados no vale do Ceira, mas provavelmente em margens opostas (…) o combate parecia inevitável e prestes a travar-se…», são alguns dos comentários de cronistas e historiadores. Mas o encontro entre os irmãos não se verifica.Embora alguns seus correligionários quisessem que avançasse, desejado que se desse a batalha e se prendesse o duque de Bragança, « D. Pedro preferiu ficar na defensiva, dispondo as suas forças em ordem de batalha, e impedir apenas a passagem do irmão. » E D. Afonso, ou por ter medo de D. Pedro, ou « por não encontrar na maior parte dos seus homens vontade de combater », ou « por ter recebido ordens de El-Rei para evitar o encontro », fugiu, em direcção à Covilhã, segundo uns, ou em direcção a Alvares ou Pampilhosa da Serra, segundo outros. Em qualquer dos casos, abandonando os do seu exército, que seguiram outro caminho, subindo a serra, onde sofreriam as maiores clemências, alguns morrendo pelo frio e outros chegando a Santarém em estado lastimoso, o que mais faria acirrar os ânimos contra D. Pedro. « Desde que avançara até à várzea, o Duque de Bragança metera-se num fundo de saco. Não podia retirar, porque as povoações tinham destruído as barcas para a passagem do Alva, que ia cheio na primavera, com o derreter das neves da serra.” Porque teria vindo o Duque de Bragança provocar o irmão, ao entrar nas terras de Góis, mesmo nas suas barbas, e depois fugir? Não esperava ter aquela oposição? Sentira resistência da parte dos goienses, ao verem a sua terra invadida? Teria a gente da Várzea, certamente mais próxima do ex-donatário Fernão de Góis, manifestado mais simpatia por D. Pedro? Pouco tempo depois, a 20 de Maio, numa terça-feira, dá-se a batalha de Alfarrobeira, perto de Alverca, onde seria morto o Infante D. Pedro. Encerrava-se uma fase da nossa História, felizmente tendo ficado ilesas as boas várzeas do nosso rio Ceira.
Nota: Este texto foi apoiado, entre outras, pelas obras: Os Filhos de D. João I, de Oliveira Martins (Guimarães Editores, 1973), Itinerário do Duque de Bragança em 1449, de Gastão de Melo de Matos (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1951) e Nos Caminhos dos Góis, de João Nogueira Ramos (Tipografia Lousanene, Lda, 2001).