Quando
das pesquisas que, durante a passada guerra mundial, se efectuaram no leito de
alguns riachos do concelho de Góis mais particularmente ricos e aluviões de
estanho, ouro e volfrâmio, apareceu nas areias da ribeira de Bordeiro, formada
pela junção das ribeiras de Piães e Celavisa, um pendente de ouro nativo, com
2,8 g de peso, que por indicação de alguns bons amigos me veio ter às mãos e
que nas páginas desta prestigiosa revista me proponho dar a conhecer, acedendo
assim ao gentil convite do seu ilustre director.
Formado
por um aro aberto de secção em rombo regular adelgaçado para as pontas
rematadas em gancho, aro de cuja parte inferior pendem quatro pequenas esferas
dispostas em cacho e achatadas pelo lado do reverso, o brinco da ribeira de
Piães constitui um novo exemplar a juntar aos três outros conhecidos do país encontrados
em povoações dos concelhos de Évora e Estremoz.
No
resto da Península Ibérica conheço, além do exemplar em prata existente no
Instituto de Valencia de Don Juan e procedente de Santiago de la Espada, o
exemplar de Paredes de Nava, na província de Palencia, adquirido pelo Museu
Arqueológico Nacional de Madrid, e publicado por B. Taracena a pp. 82-83 (est.
XXVIII 2) das Adquisiciones del Museo
Arquelógico Nacional (1940-1945) Madrid 1947, com a indicação de se tratar
de um “tipo frecuente en el império” (p. 82).
Similar
a este, embora mais antigo, é de sobra mais conhecido um outro subtipo de
pendentes, cujo aro, em vez de ser formado por uma haste mais ou menos fina, é constituído
por uma delgada lâmina em forma de crescente, no geral, ornamentada. É o caso
do brinco do tesouro ibérico de Roa, de cobre dourado, descrito por J. Luís
Monteverde no t. XXII do Archivo Espanol
de Arqueologia 1949 p. 379 fig. 1 e que pode, enfim, considerar-se como um
género bastante evoluído de certas arrecadas de forma em cacho de uvas, quais
as de Santiago de la Espada, ou o caso ainda daqueloutro brinco de ouro de
Paredes de Nava que, em correspondência para a formosíssima arrecada de Burgos,
da qual parece ser mera simplificação em virtude da disposição irradiada das
esferas, nos levaria a estabelecer confrontos demasiado amplos para a finalidade
puramente informativa desta nota.
Confinando-nos,
porem, exclusivamente ao subtipo representado pelo exemplar da ribeira de
Bordeiro, não há dúvida hoje em dia de que ele corresponde a uma adiantada fase
evolutiva de anteriores formas mais complicadas, mas todas elas em suma redutíveis
a um mesmo tipo originário, de manifesta ainda que remota filiação púnico-fenícia.
É o que, entre outros factos, deixa claramente entrever a circunstância,
apontada por J. Luís Monteverde, art. cit.
p. 379, de certos bustos de Tanit, da necrópole púnica de La Albufereta, em
Alicante, ostentarem precisamente brincos idênticos ao do tesouro ibérico de Roa
e não documentados, por sua vez, no numário grego ampuritano.
Isto
não quer dizer, claro está, que devamos admitir uma importação directa de tais
peças, porquanto, em consequência da penetração romana, há muito que a influência
de Cartago deixara de exercer-se na Península. Mais lógico é pensar-se em
produtos de uma arte indígena que, uma vez perdido o contacto com o génio
artístico do mundo púnico, do qual tomara inspiração, técnica e modelos, paulatinamente
foi degenerando. Assim é que, depois das maravilhosas arrecadas próprias da
cultura céltica dos castros galaico-portugueses, como as de Estela, Afife,
Laundos, S. Martinho de Anta, Irixo, Cardedo, etc., nos surgem finalmente espécies
em extremo simplificadas e características de uma avançada época imperial
romana (sécs. III-IV), como é o caso do brinco de Bordeiro que, de resto,
parece já estar morfológica e tecnicamente anunciado pela arrecada de S.
Martinho de Anta, cuja parte inferior, terminada em “esferites… dispuestas en
un gracioso racimo”, oferece o mesmo pormenor daquele a mais estranha e
palpável semelhança; quase diríamos que é o seu protótipo. O mais notável é que
se, cronologicamente, o brinco da necrópole de La Osera, dos fins da época do Ferro,
é mais ou menos sito entre ambas as fases desta evolução, não é menos evidente
que, sob o aspecto tipológico, ele é bem, ao mesmo tempo, um dos elos da cadeia
a ligar tais brincos às famosas arrecadas, pois se daqueles apresenta já a
forma típica, ainda ostenta destas a aplicação inconfundível da filigrana
espiralada.
Que
é muito provável se trate de um artefacto de arte indígena, parece inculcá-lo
ainda e sobretudo a circunstância de o pendente em causa ter sido achado num
local em que precisamente abunda o ouro. Com efeito, quer na encosta da margem esquerda
da ribeira de Celavisa, quer em ambas as vertentes da ribeira de Piães,
ribeiras que por confluência dão lugar à de Bordeiro, ainda hoje podem ver-se
numerosíssimos vestígios de antigas explorações auríferas de época romana. Não
vai há muito, como é do conhecimento geral da região, que próximo à entrada de
uma mina conhecida pela Eira dos Mouros
e sobranceira à ribeira de Piães, mina em cujas galerias são frequentes os
achados de tempos pré-históricos, casualmente apareceu um pedaço de rocha de quartzo
com incrustações de ouro no valor aproximado de vinte mil escudos.
O
certo é que, de qualquer modo, estamos em fase de um tipo de jóia que, pela sua
generalização nos últimos dois séculos da dominação de Roma, não é lícito
deixar de associá-lo ao seu património cultural. Em tais condições, o presente
objecto seria um dado mais a comprovar a permanência local, até época tardia,
de populações directa ou indirectamente incorporadas aos interesses económicos
do mundo romano e ali atraídas pelo fascinante chamariz do ouro.