A presença humana na região de Góis revela-se na época da Pré-História recente, através de artefactos e de manifestações de arte rupestre, como os petróglifos "Pedra Letreira" e "Pedra Riscada", representando cenas ou ritos da vida anímica de grupos sociais, situados, respectivamente, nas freguesias de Alvares e Cadafaz. Vestígios do tempo romano, alguns ainda não suficientemente indagados, atestam também a presença local de exploradores mineiros, dos cobiçados ouro e estanho de que as serras eram possuidoras, bem como de rotas comerciais que atravessavam a região, interligando centros da Hispânia ocidental. Presume-se e acredita-se que, sob o domínio romano e, seguidamente, visigótico e muçulmano (o topónimo Goes é supostamente de origem goda), tenha havido uma comunidade com organização administrativa própria. Mas não se possui testemunhos. Góis só nos aparece referido, como território com identidade própria, nos primórdios da formação de Portugal, nos inícios do século XII, aquando da sua doação em 1114. É provável que fosse um centro estrategicamente localizado, razão por receber carta de doação das mãos das principais personalidades do condado portucalense, civis e religiosas. Anteriormente, teria sido um castrum (1), como refere o próprio documento de doação, que englobaria um conjunto de povoações espalhadas por uma área até às margens do rio Alva, parte da qual é hoje pertença do concelho de Arganil.
A Reconquista teve a sua origem histórica na reacção contra a presença muçulmana, iniciada nas montanhas das Astúrias com a revolta de Pelágio, no ano 718. Cento e sessenta anos depois, no tempo de D. Afonso III da monarquia asturo-leonesa, a cidade de Coimbra é recuperada e integrada no reino das Astúrias. Durante cerca de dois séculos, assiste-se a avanços e recuos dos dois lados, ora subindo os muçulmanos até ao Douro, ora descendo os cristãos até aos arredores de Lisboa. Quando se dá uma nova reconquista de Coimbra em 1064, por D. Fernando I, então rei de Castela e Leão, parece tornar-se definitivo o domínio cristão nesta região. Por essa altura, D. Fernando I já distribuía terras na região de Coimbra, onde era conveniente haver guarnições para fortalecimento da cidade e defesa das vias que davam acesso ao invasor. Eram chefiadas normalmente por pessoas de poder que se afirmavam pela função guerreira, os potentes homines, os barones. E é de supor que Góis, zona estratégica no enfiamento das serras da Lousã e da Estrela, tenha sido uma delas. Em 1096, D. Afonso VI, sucessor de D. Fernando I, distribui a faixa ocidental da península pelos seus dois genros, para mais eficazmente poder prosseguir a luta contra o invasor. A região da Galiza fica com D. Raimundo de Borgonha e o território mais a sul, o Condado Portucalense, com D. Henrique de Borgonha, que nesse mesmo ano casara com a filha mais nova, Teresa. Tinha aqui início o núcleo geo-histórico de Portugal. Durante dezasseis anos, tantos quantos decorreram até à sua morte em 1112 (2), D. Henrique fica a administrar o Condado. Para além das actividades bélicas, dá início a uma fase de organização e de desenvolvimento e, em 11093, nasce-lhe o seu filho Afonso Henriques. D. Teresa, depois de viúva, continua a política de seu marido, nomeadamente reforçando a linha natural do rio Mondego. É nesse tempo que se dá a doação de Góis, em 1114, no mesmo ano que era outorgado, pelo bispo de Coimbra, o foral a Arganil, terras fronteiriças com as de Góis. Seria D. Afonso Henriques, depois de se ter libertado das rédeas da sua mãe, em 1128, e de assumir o governo do Condado Portucalense, a fixar a corte em Coimbra, abrindo espaço para a sua acção política e militar. Rodeia-se de um conjunto de infanções e cavaleiros, os “cavaleiros de Coimbra”, um grupo dominante na região, com força económica e social, integrados na nobreza pela sua função militar.
Nessa época de formação do reino, o poder régio ia doando os territórios livres ou reconquistados, encorajando a organização de poderes locais, para defesa e repovoamento. Uns foram para senhorios eclesiásticos, como seria o caso de Folques (a que viriam pertencer as terras de Alvares), outros para senhorios leigos, nobres, pessoas de famílias de posição social elevada, como sucedeu com Góis. Esta região da Beira ocidental tornar-se-ia assim uma zona senhorial, de casas solarengas, em que as relações de sociabilidade entre si eram frequentemente renovadas por alianças matrimoniais. Eram domínios de modelo “senhorial”, um empreendimento de sentido económico, com as rendas e benefícios revertendo para as mãos dos donatários, e simultaneamente uma unidade de autoridade, dispondo de direito próprio, com obrigações entre os moradores e o senhor. E também uma unidade política, definida pela imunidade e autonomia em relação ao poder central, com jurisdição de primeira instância. A suprema jurisdição pertencia naturalmente ao rei.
Ao mesmo tempo, os residentes desses territórios iam consolidando um sistema de regime municipal. Independente de outras divisões administrativas que antes pudesse ter havido, sob influência ou não de um município primitivo (tenha sido ele romano, germânico, muçulmano ou moçárabe, corroborando as várias teorias dos historiadores), surge-nos agora o novo concelho, condicionado à sociedade emergente da Reconquista. Com o repovoamento e a emergência de novos factores, de ordem económica, social, política e militar, os povoadores foram constituindo instituições administrativas, cuja identidade se vislumbra nos primeiros forais. A nível supra-municipal, integravam-se num órgão sub-regional, corporizado no denominado “tenente”, de nomeação régia, com funções essencialmente militares e representando o monarca na região. Não havia ainda uma divisão territorial, pois ela seria contemporânea da “fixação de fronteiras” do país em formação. O espaço geopolítico só seria concluído em 1249, com D. Afonso III, primeiro rei de Portugal e Algarves, e em cujo reinado, aliás, era reconhecido o papel dos municípios na organização do território. As fronteiras do reino seriam depois fixadas pelo tratado de Alcanizes, em 1297, por D. Dinis, e fazia-se o reconhecimento da diversidade regional do país, estabelecendo-se as regiões (cinco no seu total, entre elas a da Beira). Posteriormente, seu filho D. Afonso IV instituiria oficialmente as comarcas (seis, entre elas a também denominada Beira).
Mas regressemos a Góis. Anaia Vestrares, senhor das terras de Góis desde 1114, pelas mãos da viúva D. Teresa de Portugal, torna-se também íntimo do círculo ao redor de seu filho D. Afonso Henriques e com ele colabora nas suas acções. Nomeadamente na implantação do mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, o novo baluarte e ponto de consolidação do poder real. Com o repovoamento estabelecido por Anaia Vestrares, certamente terá começado nas terras de Góis a formação de uma estrutura municipal embrionária. Na base de uma consciência de solidariedade entre os vizinhos e por razões económicas e de segurança. De início, as terras foram partilhadas entre os herdeiros dos donatários, como era hábito fazer-se na época. Depois seriam reagrupadas por um morgadio, instituído em finais do século XIII, e recebiam o primeiro foral – um contrato estabelecido entre o senhorio e os residentes, que reconhecia algum grau de autonomia. Este foral, datado de 1314 (precisamente dois séculos após a doação das terras), refere já a existência de juiz, alcaide, procurador e escrivão, sinal evidente da existência de uma anterior organização administrativa. Se até aí havia uma estrutura provavelmente rudimentar, já com “homens-bons” eleitos, agora está-se em presença da ecúmena muni-cipal: um núcleo geo-económico, contínuo na sua extensão territorial e com uma comunidade dotada de foral senhorial. Podemos considerar aqui o início “formal” do concelho de Góis?
Será pertinente ponderar as principais características que enformaram o concelho de Góis e as forças que mais lhe deram coesão ao longo do tempo.
A constituição do senhorio. Uma doação anterior à monarquia. A situação no tempo da doação, nos inícios do século XII, aparece-nos naturalmente como um factor predominante (3) na formação do concelho. Uma doação efectuada antes da fundação do reino e pela mão da então administradora do Condado Portucalense, D. Teresa de Portugal, e da do seu filho, infante Afonso Henriques, menino ainda, mas futuro primeiro rei. As terras seriam doadas para estímulo ao povoamento, à circulação das pessoas e bens, à consolidação de fronteiras e ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças em confronto (a região a nordeste, montanhosa, fora palco de guerrilhas entre grupos beligerantes), fortalecendo assim a expansão territorial para o sul. Doaram em perpétuo a um dos nobres cavaleiros do séquito da Coroa, Anaia Vestrares, provavelmente oriundo da região das Astúrias, que tinha acompanhado a vinda do conde D. Henrique e na época já enraizado na região de Coimbra: “para vós e para vossos descendentes, que façais deles o que a vós e a eles prover”. Se ali, à beira chã do Ceira, teria havido em tempos idos uma povoação com bastante movimento, agora parecia estar pouco povoada (4), certamente pelas lutas ou escaramuças entre cristãos e mouros, que motivara a fuga dos habitantes para os esconsos das serras ao redor. O original do documento de doação terá desaparecido, mas as cópias e traduções existentes, ainda que parciais, permitem reconstitui-lo. Tratou-se da doação de um bem que não era da coroa, pois coroa não havia. Uma doação que nada estipulava quanto a direitos e deveres, uma doação sem contrapartidas pela parte do donatário. Contrariamente a uma concessão feudal, em que o vassalo estava obrigado a serviços concretos ou a prestações económicas, aqui apenas estaria inerente a obrigação de lealdade para com os senhores do condado, futuros reis do novo reino. Lealdade e confiança recíprocas que foram aliás uma constante nos bons e nos maus momentos, ao longo dos sete séculos de existência do domínio, que tanto foi o tempo que durou a política de senhorios em Portugal. Anaia Vestrares é assim considerado o fundador da Casa e o patriarca da família Goes. Na geração seguinte, os seus descendentes adoptariam o topónimo, como apelido de linhagem.
O documento de doação já refere “lugares e seus termos antigos”, com os seus topónimos. Essas terras seriam depois povoadas, instituindo-se a igreja matriz, com direito de padroado, reconhecido pela cúria romana, e administradas com jurisdição própria, reconhecida sucessivamente por quase todos os reis. Nos primeiros tempos, o direito comum clássico parecia garantir o status quo do senhorio. De facto, ao território doado estava adjacente a sua própria jurisdição. Em Góis, desde o início que os senhores se arrogaram de confirmar os juízes da terra e oficiais, de ter ouvidor (provido por si), de não necessitarem de confirmação régia para as sentenças proferidas, de conhecerem as apelações. Eram juízes ordinários (não de carreira, não letrados), de eleição popular, que decidiam em primeira instância as contendas das partes. A terra estava pois isenta de correição, ou, como se dizia, nelas não entrava o corregedor, para aplicação da justiça. Poderes que vieram a ser sempre reconhecidos pela Coroa, apesar de numerosas tentativas de os retirar, por parte dos defensores da unidade do poder e do seu centralismo no monarca, que viam nos senhorios, tal como no poder municipal, um obstáculo ao racionalismo administrativo do reino.
Em 1434, é promulgada por D. Duarte a Lei Mental, que teria consequências directas na vida dos senhorios. E, já com D. João II no trono, ficava estabelecida a regra de que as doações da Coroa deviam ser confirmadas, quer por morte do donatário, quer pela do rei. Apesar da doação de Goes ter direitos anteriores à monarquia e fora do âmbito da Lei Mental, os seus donatários permitiram ser consideradas como doações da Coroa (e algumas vezes solicitaram mesmo esse beneplácito régio), nas quais a vontade do rei prevalecia. Praticamente não houve rei algum, depois da constituição do morgadio até ao liberalismo, que não doasse ou confirmasse o domínio de Góis aos seus legítimos donatários, apesar de estes já o possuíam de jure et facto. Era uma anuência sua, comportando-se como que desvalorizando o seu ancestral direito à posse da terra. Mas era também conveniente aos seus interesses, para vencer ameaças e contendas com potenciais usurpadores familiares, que os houve, e outras vezes para dignificação da sua posição social e colocarem-se nas graças e mercês de el-rei. Este, por sua vez, via nas doações senhoriais uma exaltação do seu poder.
Ao longo da Idade Moderna, assiste-se à queda do poder senhorial. O direito português começava a pôr em causa as ancestrais jurisdições e regalias, com duas correntes de práticas jurisprudenciais: uma em que a posse ou costume imemorial era admitido como título suficiente, e outra considerando os senhores como lugares-tenentes do rei, que lhes delegada a jurisdição. Em 1790, um decreto imbuído no novo espírito da abstracção do direito e da justiça, promovendo o desaparecimento das desigualdades, determinava o fim das jurisdições senhoriais em todo o reino. Eram abolidas as isenções de correição e as ouvidorias. E, poucos anos depois, a revolução liberal terminava de vez com os senhorios.
A transmissão do senhorio. Um morgadio anterior à Lei Mental. Desde a doação, os bens de raiz eram repartidos pelos descendentes, conforme os testamentos ou os acordos entre si. A última partilha sucedeu em 1269, por falecimento de Pedro Salvadores de Goes, pela qual as aldeias, casais e outras terras foram divididas em várias parcelas e distribuídas por nove co-herdeiros. O sucessor do domínio com o poder senhorial, ficou, como é natural, com a vila de Góis. Em 1290, seria constituído em Góis um morgadio. Foi um dos primeiros morgadios feito em Portugal. Os bens ficavam indivisíveis e inalienáveis, insusceptíveis de serem partilhados por morte do titular do domínio, estabelecendo-se um tronco linhagístico. Dizia-se que havia um “vínculo”, isto é, os bens estavam vinculados à sua perpetuação no seio de uma família. O morgadio veio a exercer uma função histórica na sociedade do Antigo Regime. Regulamentava a administração de um património, reforçava um comportamento familiar e fazia emergir uma chefia no seu seio. Anteriormente, até cerca de meados do século XI, o esquema sucessório nas antigas famílias tanto se fazia por linha feminina como por linha varonil, quer na vertical quer na horizontal, onde qualquer membro da família podia ser chamado a desempenhar o lugar de chefia. Depois tornou-se prática na sociedade o sistema familiar agnático, com afirmação do varão, onde a sucessão se fazia privilegiando o primogénito. Os filhos segundos foram relegados para uma posição secundária, pedindo-se à mulher que fosse fecunda e desse varões, para continuar a linhagem do marido. No morgadio de Góis, a relação estabelecida foi a da paternidade vertical: em caso de morte do filho, seguia-se o neto, isto é, a linha do primogénito sobrepondo-se às dos secundogénitos. A sucessão feminina seria contudo admitida, em caso de falta de varão.
É, pois, no século XIII que desabrocha esta forma de se regular a transmissão de heranças familiares. Durante muito tempo não existiria qualquer legislação e somente nas últimas décadas de Quinhentos começa-se a publicar sentenças dos tribunais relativas a morgadios. Com as Ordenações Filipinas, na passagem do século XVI para o XVII, foram estabelecias algumas regras, mesmo assim com pouca aceitação entre os jurisconsultos. Na prática, os morgadios nunca estiveram sujeitos a regras específicas senão desde o século XVIII. Sempre encontraram em Portugal a complacência da Coroa, interessada em manter o poder das famílias, em que se apoiava. O rei reclamava para si o poder e a jurisprudência das terras, quando se punha em dúvida a sucessão, por ausência varonil, ou por eventuais atentados às regras estabelecidas na carta do morgadio, mas frequentemente acabava por as reentregar aos seus legítimos possuidores. O direito de morgadio sobrepunha-se normalmente à legislação régia, como sucedeu com frequência nas terras de Góis, como veremos. Perto do fim do terceiro quartel do século XVIII, os morgadios sofrem transformações, nomeadamente com as leis de 1769 e 1770, tentando acabar com algumas irregularidades. Mas sobretudo com intenção de fomentar a actividade produtiva das terras. De facto, este tipo de vínculo repercutia-se sobre a actividade económica da sociedade, contribuindo para a preservação da estrutura feudal-senhorial da agricultura. Os morgadios eram um impedimento para a mobilidade da propriedade fundiária e obstavam à penetração de capitais na agricultura. Para além das injustiças e dos problemas sociais advindos da proscrição dos segundos filhos e das mulheres. À medida que o iluminismo e a razão iam conquistando avanço, mais se tinha consciência da necessidade de lhes pôr fim. Começam a surgir revoltas populares, com particularidade intensidade na Beira Litoral (o concelho de Góis também seria palco de algumas, ainda que se julgue de pouca relevância). A legislação que saiu com a revolução liberal tenta restringir a amplitude do poder destas instituições vinculares, mas seria o célebre decreto de Mousinho da Silveira de 4 de Abril de 1835, que iria permitir um avanço expressivo, embora promovendo apenas a abolição dos morgadios de fracos rendimentos e outras medidas menores. Tinham peso os poderosos senhores agrários, que defendiam os seus interesses. O morgadio de Góis terminaria nesta data. Foi preciso chegar-se ao ano de 1863 para, com o decreto de 19 de Maio, pôr-se termo a esta instituição, abolindo-se todos os morgadios e capelas existentes no reino. Mesmo assim com uma excepção, a da Casa de Bragança.
Vejamos os factos mais relevantes do morgadio de Góis. Uma das principais causas da sua constituição foram as contendas originadas por partilhas. Vasco Pires Farinha teve de vencer contestatários familiares, que se julgavam também com direito aos domínios de Góis. Depois de lutas bélicas, com mortos e feridos, e de se chegar a um acordo de compensações, com o beneplácito real, estabeleceram-se as regras pelas quais se deviam orientar os destinos das terras. Faria herdeiro de todos os bens de Góis apenas um dos seus descendentes, curiosamente, ao que se julga, não o filho mais velho, mas o secundogénito. O morgadio iria permitir a continuidade do património, abrindo caminho para a consolidação de um espaço municipal, que, passo a passo, se foi firmando ao longo do tempo, embora inserido numa reserva senhorial, a ela ligado por forais (por vezes sob a forma de contratos com os autóctones). Que mais tarde se inseria na administração municipal do reino, como unidade concelhia, dirigido e representado pelos homens bons, sob a presidência de um juiz ordinário, localmente eleito, actuando dentro de fronteiras territoriais demarcadas. Fronteiras que, ao longo do tempo, foram naturalmente variando, de acordo com as circunstâncias geológicas, a vizinhança com os concelhos confinantes ou a política do governo central. O estatuto de morgadio viria pois a ter força, ao longo dos séculos, não apenas como factor de coesão terrena, mas também como documento de prova em numerosas sentenças, que confirmavam os direitos jurisdicionais de Góis. Mas mesmo com morgadio consolidado, não deixaria de haver contendas pela sucessão do poder, ao longo da dinastia dos Goes. Não já confrontos armados, como tinham sucedido com Vasco Farinha, mas na área do direito.
Três casos houve, em sucessivas gerações que se prolongaram por cerca de um século, que criaram alguma instabilidade na região, com intervenções da Coroa, tendo sido mesmo solicitada, num deles, a intervenção da cúria romana. Primeiro, foi Martim Vasques, que entraria em contenda com o seu filho Estevão Vasques, pretendendo deserdá-lo. Posteriormente, este, sem filhos e fazendo de testador, escolhe como seu sucessor, a sua neta Mécia de Goes. E, depois, esta própria entraria em longa disputa com os seus dois filhos, com consequências no rumo por que prosseguiria a linhagem e o próprio senhorio. Todos estes casos à revelia da carta do morgadio, tentando-se aparentemente privilegiar filhos ou netos com maior afinidade afectiva, em prejuízo dos que se encontravam do lado do direito.
A instituição do morgadio, com a concentração da riqueza, era uma novidade na época e, naturalmente, geradora de conflitos. A Lei Mental, que corporizaria oficialmente este modelo sucessório, adoptando-o quase como padrão, só seria promulgada em 1434, e de certa maneira veio facilitar a resolução das contendas familiares em Góis. De notar, neste período goisiano, a ausência de capela e a inexistência de panteão familiar. O que estava presente ao vínculo, não era a exaltação da figura do progenitor ou a perpetuação de uma memória familiar, mas a inalienabilidade dos bens, dificultando o aparecimento de eventuais reclamantes à sua posse. Não era uma relação com o passado, mas a transmissão material dos bens. A memória familiar viria posteriormente, com a dinastia dos Silveiras.
De realçar também nesta época o facto de ter sucedido uma quebra de varonia, sem causar descontinuidade na linhagem. Deu origem à entrosagem da família Goes com a família Lemos. Gomes Martins de Lemos, pelo seu casamento com Mécia de Goes, seria senhor de Góis, e até sepultado na igreja matriz local, mas a sua linhagem prosseguia o seu próprio caminho, distinto do dos Goes, com estatuto de alta nobreza, vindo a erigir o seu panteão em Vila do Conde.
Góis inicia a segunda etapa na sua história, com os Silveiras, em seguimento a uma segunda quebra de varonia, quando da passagem dos tempos medievais para os modernos. Tal como na primeira quebra, a donatária sucessora ficara viúva, mas desta vez com a linhagem do marido a sobrepor-se nos descendentes. Os Goes desapareceriam de Góis (5), o local e a justificação da sua origem, e seria substituída pelos Silveiras. Mas, curiosamente, com a entrada destes, a consciência de continuidade do senhorio de Góis vai sair reforçada. Duas personalidades da linhagem Silveira tiveram um papel fulcral nesse reforço. Primeiro, Diogo Martins da Silveira, o primeiro Silveira nas terras de Góis, onde entrou pelo seu matrimónio com Beatriz Lemos de Goes, herdeira do morgadio. Tinha recebido de seu pai um modelo de vida, onde a hierarquia e a autoridade eram dois pilares fundamentais, e soubera transmitir esses predicados aos filhos. Depois foi o seu neto, conde D. Luís da Silveira, quem viria a consolidar e aprofundar esse sentimento. Os meandros da vida fizeram-no voltar-se para Góis, terra dos seus antepassados. Afastado da vida mundana da corte, onde estivera desde jovem, servindo o rei, dedica os seus últimos anos a erguer em Góis uma obra de valor, não apenas materializada em edifícios, dos quais alguns ainda hoje integram o património cultural e artístico do concelho, mas também deixando expressa a sua preocupação pela afirmação do espírito de família e de um código de valores da sua representação. Constrói uma memória familiar, perpetuando a sua própria e a dos antepassados, filiada também na dos Goes e na dos Lemos, e impõe um modelo de comportamento, de que o seu testamento é um relevante testemunho. Com panteão, brasão e normas de conduta pessoal. Posteriormente, o seu filho e sucessor, conde D. Diogo da Silveira, rematava a obra do pai, agora com maior afinidade às áreas social e espiritual, de prestação de assistência e de prática religiosa. Se o testamento de Vasco Pires Farinha, instituindo o morgadio, determinava as regras sucessórias, vinculando os bens de raiz, 239 anos depois, o testamento de D. Luís da Silveira marcava a memória familiar e a elevação dos valores sociais e artísticos. Dois testamentos, dois testemunhos, que são marcantes na história do concelho.
No início da Restauração, nova quebra de varonia faria entrar em Góis uma terceira linhagem, a dos Lencastres. A sua ligação à antiga Casa dos condes de Vila Nova de Portimão, e depois com a dos marqueses de Abrantes, fez deste terceiro período da história de Góis também uma época áurea, com os senhores de Góis vinculados ao segmento superior da nobreza, à “nobreza de espada”. Mas era já o tempo em que o poder senhorial se enfraquecia, com o assalto dos jurisconsultos às prerrogativas dos senhorios, dentro da filosofia da nova política do absolutismo esclarecido, e com a ajuda do marquês de Pombal, determinado a vergar a nobreza. Por outro lado, a grande nobreza optava cada vez mais pela residência na capital, administrando de longe os seus patrimónios. E, em Góis, o absentismo dos seus senhores passava a ser normal. Este período dos Lencastres decorreu sem quebras de varonia, embora com alguns sobressaltos na linha sucessória, com tios e sobrinhos disputando o poder.
Ao longo da história de Góis, não faltaram, pois, crises sucessórias, ao arrepio das regras estabelecidas na carta do morgadio de 1290. Houve quem tentasse esconder a primogenitura dos filhos, de dispor dos bens ou de fazer doações, sem poderes para isso. Mas, com maior ou menor artimanha, com mais ou menos ajuda do poder real, o senhorio prosseguiu numa linha sucessória contínua. Também não deixou de haver tentativas para o transferir para Coroa. Mas, sustentando-se sobretudo neste morgadio, conseguiu perpetuar--se até à revolução liberal, a qual iria pôr fim a um modelo de administração de territórios que a sociedade moderna já recusava. O morgadio madrugador de 1290 foi certamente uma das bases em que assentaram os alicerces do concelho de Góis.
O direito de padroado, a colegiada e o Hospital. O poder da Igreja foi determinante na formação do reino. D. Afonso Henriques encomendou Portugal à Santa Sé e considerou-se vassalo do papa, tal como os seus imediatos sucessores. Coroa e igreja eram aliás os dois maiores proprietários e seriam constantes as querelas entre si, com conflitos sobre privilégios, doações e jurisdições, intercalando-se períodos de violência e de condescendência.
Na acção espiritual e nas suas relações com a Igreja, Góis teve sempre uma acção sobrelevada. Os seus senhores tiveram o direito de padroado desde os primórdios da doação. É um privilégio que está normalmente associado, como contrapartida, à edificação de igrejas ou de centros religiosos, e, por esse facto, é credível que a igreja matriz de Góis tenha sido construída pelo próprio Anaia Vestrares, no século XII. Eventualmente, poderá ter-se procedido à reconstrução de um templo moçárabe já existente, mas não se tem qualquer indício nesse sentido. Esse direito é ressaltado quando Anaia Vestrares cede o padroado da igreja ao convento de Lorvão (embora na prática não pudesse ter sido concretizado). No século seguinte, em 1274, seria transmitido a Vasco Pires Farinha por testamento do deu irmão, frei Afonso Pires Farinha, então senhor de Góis. Em 1351, uma sentença da cúria romana confirma-o e, posteriormente, ao longo dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, sucessivas sentenças judiciais, bulas e cartas da cúria romana, reconhecem-no, referindo, por vezes, o facto de a igreja matriz ter sido construída por antepassados dos donatários.
O padroado, com a prerrogativa de indicar (à “apresentação”) o clérigo para um ofício eclesiástico que vagasse, era um direito honorífico e útil, pois dava ao patrono honras e privilégios. Mas também era dispendioso, porque lhe recaía o ónus de defesa e manutenção da igreja ou da capela. Houve casos de abuso, sobretudo na Idade Média, de igrejas possuindo vários patronos, com o intuito de obtenção de regalias, que vieram aliás dar origem a providências por parte da Coroa. Em Góis, contudo, o seu donatário foi sempre o único patrono, não se tendo conhecimento de qualquer usurpação ou de queixa à hierarquia eclesiástica. Era um direito antigo, cuja origem se perde no tempo dos godos, que os nossos reis reivindicaram desde o início da monarquia, nomeadamente para nomeação dos bispos. Não faltou também a intenção de a Coroa usurpar esse direito em Góis, mas os seus donatários sempre se defenderam judicialmente com sucesso.
Ainda no século XIV, os senhores de Góis constituem uma colegiada na igreja matriz, in solido com as entidades eclesiásticas, na intenção de promover o culto divino com a maior solenidade. Era provida de quatro rações perpétuas para quatro clérigos permanentes, com regulamento e obrigações idênticas aos das igrejas colegiadas de Coimbra, devendo um deles ser obrigatoriamente tangedor de órgãos, com compromisso confirmado por bula papal. A sua instituição em Góis, a título perpétuo, de encargos elevados, suportados com prebendas da igreja local e dos senhores donatários, com o beneplácito da cúria romana, formado com um conjunto de dignidades que a tornavam semelhante ao cabido de uma sé catedral, elucida-nos bem da importância que o culto religioso tinha nesta pequena comunidade do interior do país.
Mas seria o Hospital a capitalizar mais as atenções sobre Góis, constituindo um marco de relevante importância na sua história. Foi instituído pelo então donatário, conde D. Diogo da Silveira, inteiramente à sua custa, ficando ele e os herdeiros do senhorio, os seus perpétuos administradores. A sua conclusão terá sido no início da segunda metade do século XVI. O objectivo foi o recolhimento dos mais necessitados, fossem eles peregrinos ou passageiros, prestando-lhes assistência na saúde, no abrigo, no agasalho e na alimentação, sobretudo durante o inverno, em terra muito fria, como era Góis. E proporcionar-lhes assistência religiosa, para o que fora construída uma capela, anexa ao edifício principal, com capelão privativo. Era simultaneamente um hospital, um albergue e uma “Casa de Deus”. Tinha habitação para desabrigados, enfermaria, médico e enfermeiro privativos, botica, abastecimento próprio de água e jardim ao ar livre, para banhos de sol e ar. Teve várias bulas e concessões apostólicas da corte romana, com prerrogativas, indulgências e privilégios. Teve direito a padroado e foram-lhe anexadas os benefícios das igrejas e capelas do senhorio de Góis e de mais três no bispado de Viseu, todas pertencentes a D. Diogo da Silveira, de modo a poder usufruir dos rendimentos necessários para um bom e regular funcionamento. Redigiram-se os seus estatutos, aprovados pelo bispado de Coimbra, com os direitos e obrigações dos doentes, do administrador e do capelão, impondo normas que iam desde a limpeza e higiene à qualidade dos materiais utilizados, das obrigações sociais e morais à actividade religiosa. Tudo suficientemente pormenorizado ao longo de 43 artigos. O Hospital, uma instituição modelo no interior do reino, tornou-se conhecido e procurado por forasteiros de longe. E mais renome alcançou, quando se especializaria no tratamento da sífilis, em parte devido, segundo vozes credíveis, às virtudes medicinais da água que o abastecia, vinda da fonte do Pombal. O Hospital foi construído numa época em que a assistência era assumida mais como um exercício de caridade e feita de forma muito incipiente, principalmente quando longe de Lisboa. Por exemplo, em Coimbra, nos inícios desse século, os estabelecimentos hospitalares existentes eram de tal maneira desorganizados, sem regulamentação e de pequena dimensão (quatro a seis camas em cada um), que levaram D. Manuel I, em 1508, a proceder à sua extinção, com excepção do Hospital de S. Lázaro, e a criar dois novos (Hospital da Conceição e o Hospital da Convalescença), um com 10 e outro com 18 camas.
A Confraria da Misericórdia de Góis seria fundada num tempo posterior, em 1598, precisamente cem anos depois de D. Leonor (que deu um grande impulso à assistência social em Portugal) ter criado em Lisboa a Casa da Misericórdia, como instituição de confraria e irmandade. Em 1790, com a perda do poder de jurisdição (por uma lei ao abrigo da qual eram abolidas as isenções de ouvidorias em todas as terras donatárias), o poder senhorial, que vinha já decrescendo ao longo da centúria oitocentista, ficava mais reduzido. E oito anos depois, o senhor de Góis, marquês D. Pedro de Lencastre, acabava por arrendar a uma sociedade comercial do Porto os bens e proveitos de toda a sua Casa de Góis, com excepção do Hospital. O seu poder em Góis passou a centrar-se então nesta instituição e nos padroados. Eram eles que lhe concediam posição de destaque no meio local. O Hospital era, aliás, desde o início um poder na vila; não podia ser visitado pelo juiz ou oficiais da terra, nem por outras justiças, com o intuito de conhecer ou julgar as suas contas. Seria definitivamente encerrado em 1834, após alguns anos de dificuldades administrativas.
Relação dos senhorios com a Coroa Os donatários das terras de Góis sempre tiveram uma relação muito próxima com o círculo da corte, ocupando cargos relevantes nas áreas militar, da governação e da diplomacia. Os Goes, os Silveiras e os Lencastres, as três linhagens que estiveram à frente dos destinos de Góis, foram todas de personalidades com destaque, numa continuidade temporal até ao fim do antigo regime. A sua relevância política, como em geral sucedia com as linhagens de prestígio, correspondia a um elevado poder económico.
Os Goes, donatários até ao final da Idade Média, fizeram parte do núcleo mais chegado da corte de um modo praticamente ininterrupto, desde o primeiro, Anaia Vestrares, companheiro de armas e colaborador de D. Afonso Henriques, a Fernão Gomes de Goes, o último varão goisiano. Era uma linhagem que nasceu e se desenvolveu ao serviço do rei, na reconquista das terras aos mouros e na fundação de Portugal. Senhores das terras de Góis e de outras na região centro, desde os arredores da serra da Lousã até Aveiro, constituíram uma das famílias mais ali prestigiadas, de grande poder económico e político. Foram próximos da construção da Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, instituição de capital importância para a acção desenvolvida por D. Afonso Henriques, bem como fundadores e protectores do mosteiro feminino de Semide, em Miranda do Corvo, que teve, como primeira abadessa, Sancha Martins Anaia, sobrinha de Anaia Vestrares.
Neste período da Reconquista, vemos alguns dos seus membros inseridos na tradicional classificação de “ricos-homens”, “infanções” ou “cavaleiros”, uma elite que acompanhava o rei nas batalhas ou se ocupava nas primeiras organizações administrativas, na época ainda desprovidas de burocracia especializada e com competências mal definidas. No Livro de Linhagens, do conde de Barcelos, que, conjuntamente com o Livro Velho e o Livro do Deão, regista narrativas das origens das mais importantes fidalguias do reino, o topónimo Góis é algumas vezes referido. São desta época os quatro primeiros donatários, todos ligados a intervenções guerreiras: Anaia Vestrares, Gonçalo Dias, Salvador Gonçalves e Pedro Salvadores de Goes. A morte em 1243 deste último, que além de cavaleiro fidalgo seria mordomo e dapífero da Casa Real, marca o fim do primeiro período dos senhores Goes.
Em 1249, D. Afonso III conquista os últimos redutos no Algarve, pondo fim à reconquista portuguesa. As armas passam a trocar-se pela política e pela diplomacia, o núcleo ao redor do rei vai evoluindo de sociedade guerreira para uma mais cortesã, a vida administrativa começa a centrar-se em Lisboa. E aqui os Goes continuam a estar presentes, em diversos ofícios, desde vassalo, criado (com o significado de indivíduo da “criação” do rei, de larga variedade de funções), dapífero (vedor da casa real, mais ligado a serviços domésticos), mordomo, camareiro-mor, cavaleiro-mor, aos cargos de escrivão de puridade e conselheiro do rei, numa polissemia de termos, funções e poderes, por vezes pouco claros e de significação diferente, consoante a época.
Estiveram ligados à Ordem dos Hospitalários, de um modo sistemático e não apenas ocasionalmente. Frei Afonso Pires de Farinha, seu destacado prior a partir de 1260, foi também conselheiro régio, corregedor dos feitos do reino e membro do conselho de regência. Passaria o senhorio de Góis a seu irmão Vasco Pires de Farinha, que, tendo igualmente frequentado a corte, como um dos cavaleiros que prestavam menagem ao rei e mordomo do Infante D. Afonso, viria a instituir o morgadio de Góis, dando ocasião, como vimos, a que se formasse um espaço municipal homogéneo e consistente.
No reinado de D. Dinis, que decorre de 1279 a 1325, a família Goes é considerada uma nobreza da corte média, na base de classificação de linhagens a partir do seu estatuto económico, dos cargos ocupados e do nível de alianças e contactos com o meio cortesão. (6) Nos reinados seguintes, desde o início do de Afonso IV (1325) ao de D. Afonso V (1446), a linhagem Goes é incluída no “grupo de uma trintena de famílias” (7), considerado como o núcleo mais relevante ao redor da coroa.
Nesta época é de referir Gonçalo Vasques de Goes, pela posição de confiança alcançada junto da família real e pelo lugar ocupado no “Desembargo Régio”, durante os reinados de D. Afonso IV e D. Pedro I. Ao longo de cerca de dez anos, desempenha o cargo de escrivão da puridade, uma espécie de primeiro-ministro de despacho e expediente. Algumas gerações depois, Mécia Vasques de Góis seria donatária, por ausência de varões. Pessoa de grande poder político e económico, liga-se, por casamento, a Gomes Martins de Lemos, membro do conselho régio, e os seus filhos, Fernão Gomes de Goes, cavaleiro-mor de D. João, eGomes Martins de Lemos, o “Novo”, conselheiro de D. Afonso V, vêm a disputar arduamente o senhorio. O desfecho dessa luta faz com que os Lemos permaneçam no senhorio de Góis apenas durante duas gerações. Posteriormente, em segunda quebra de varonia, Beatriz de Goes faz a transição para a linhagem Silveira. Os Goes desaparecem dos seus domínios, de onde tiraram o seu nome familiar, e abre-se um novo ciclo na história do senhorio de Góis.
Os Silveiras, oriundos do Alto Alentejo, constituem uma “nobreza nova” que desponta com a dinastia de Avis. Constituíram uma família de alto prestígio, com alguns membros ocupando lugares de destaque na Corte, na diplomacia, na acção religiosa e nas conquistas da nossa expansão ultramarina. No seu tempo, Góis atravessou o seu período áureo, graças sobretudo aos condes Luís da Silveira e Diogo da Silveira, pai e filho, como acima referimos.
Posteriormente, por nova quebra de varonia, inicia-se a nova linhagem dos Lencastres. Por morte do conde D. Luís da Silveira, III de Góis, o senhorio é administrado pelas suas filhas durante mais de quatro décadas, passando depois, através do seu genro D. Pedro Luís de Lencastre, para a Casa dos condes de Vila Nova de Portimão. Ligações directas à Casa dos condes de Figueiró e de Penaguião e à dos marqueses de Abrantes, e cruzando-se com as dos marqueses de Castelo Melhor, condes de Ponte de Lima e condes de Arcos, os senhores de Góis continuam nos meandros da corte, com um relacionamento geralmente pacífico, apesar do ambiente anti-senhorial que se vivia nos últimos tempos do antigo regime, prenúncio das grandes reformas da sociedade. Nas vésperas do liberalismo, quando a família real se desloca para o Brasil, fugindo às tropas de Napoleão, tomaria conta de Portugal um conselho de regência, presidido por D. Pedro de Lencastre, marquês de Abrantes, senhor de Góis. O seu neto, marquês D. José Maria de Lencastre, viria a ser o último donatário oficial de Góis.
* *
Foi com base nestes predicados – a doação, o morgadio, a acção espiritual e assistência aos mais necessitados, o aconchego da Coroa – que se ergueram e fortaleceram os alicerces do concelho, em condições de suportar as adversidades ao longo dos seus sete séculos de existência, sob a presença, quase sempre magnânima, de uma monarquia absoluta. Mas para isso também muito contribuiu a defesa pertinaz dos seus direitos, pelos quais que se bateram os donatários junto das instâncias judiciais.
Desde o início que Góis tinha jurisdição própria, com juiz ordinário, de eleição popular, presidindo ao concilium dos vizinhos. Era a autoridade máxima dentro da terra, exercendo as funções judiciais e administrativas. Podia não saber ler e escrever bem, mas era conhecedor dos foros, usos e costumes locais para decidir com justiça as contendas em primeira instância. Em algumas aldeias, era costume também haver um juiz local, de poderes limitados e dependente do juiz do município. Presidia o concilium dos residentes na freguesia, tratando das questões mais simples. Foi o que sucedeu na Várzea de Góis, que, em certas épocas, teve juiz pedâneo. Os ouvidores, representantes dos donatários, serviam de ligação ao poder judicial. A eles se podia recorrer das decisões dos juízes ordinários. A suprema jurisdição pertencia à Relação do Porto (Casa do Cível) ou ao Desembargo do Paço, em Lisboa.
Foi dura a luta travada contra os jurisconsultos, que não perdiam as oportunidades para tentar passar as terras de Góis para debaixo da alçada da jurisdição da Coroa, querendo considerar os senhores donatários como lugar-tenentes do rei. Aproveitaram-se por vezes da instabilidade deste, como sucedeu com o frágil D. Afonso V, ou das condições proporcionadas pela dinastia filipina, em que o poder central se encontrava mais longe da realidade e dos costumes ancestrais das terras, ou, já durante a centúria do Setecentos, pelos ventos do Iluminismo, em que se acreditava que a política se devia reger por princípios racionais. Não houve século algum em que não se tentasse retirar poder a Góis, que não houvesse debates judiciais, alguns deles bem acérrimos. O novo direito, numa lógica mais de agregação que de substituição (isto é, sem abolição de leis anteriores), permitia jogar com várias leituras, numa arte de se encontrar a solução mais apropriada em cada caso. Deixava assim portas abertas para os antigos usos e costumes, para as tradições. Foi jogando com as armas desse direito que os advogados dos senhores de Góis souberam defender-se com denodo e convicção, obtendo sentenças favoráveis. Esta conservação de imunidade, com reduzida intervenção de jurisdição externa, foi um elemento mais, que contribuiu para que o senhorio se perpetuasse, numa contínua linha familiar, até às leis liberais.
Com a aprovação do primeiro código administrativo regulando o poder local, em 1836, a Câmara Municipal passava a ser eleita pela população. Entre os vereadores eleitos em Góis, foi escolhido para a presidir, Dr. Martinho Caetano de Pontes, que vinha desempenhado ali as funções de juiz ordinário. Nascia o novo município. Com quatro freguesias e 1295 fogos.
Notas: (1) O vocábulo latino castrum, que, na época romana, designava um povoado fortificado, deu origem a considerar-se a existência de um castelo em Góis, hipótese que nos parece sem fundamento. (2) Datas (controversas) que nos parece reunir maior consenso entre os historiadores. (3) É posta a hipótese de já ter havido outra doação, subsequente à conquista de Coimbra por Fernando Magno, portanto meio século antes, não passando contudo de mera dedução face a débeis indícios. (4) No Nobiliário de D. Pedro, Conde de Barcelos, datado de mais de dois séculos depois, o local é referido como “montanha despovoada” e daí reproduzido em documentos posteriores, o que parece ter induzido alguns historiadores estar-se em presença de uma zona despovoada. Contudo, para nós, é verosímil que o conjunto das terras da primitiva circunscrição de Góis, que se estendia até às bordas do Rio Alva, no actual concelho de Arganil, constituísse uma região relativamente povoada. (5) Mas não em muitos locais para onde emigraram, onde a linhagem se prolongou até aos nossos dias, envolvendo personalidades que fazem parte da História de Portugal (ver Nos Caminhos dos Góis, II Parte - Da diáspora, de João Nogueira Ramos). (6) Segundo José Augusto Pizarro, em Linhagens Medievais Portuguesas. Genealogias e Estratégias (1279-1325). (7) Segundo Rita Costa Gomes, em A Corte dos reis portugueses no final da Idade Média..
JNR (O Concelho de Góis. Ensaio de reconstituição da sua História, 2009, pp. 29-49)