Endosso a palavra ao próprio rio, que, melhor do que ninguém, saberá transmitir-vos um pouco da sua longa vida. “Os antigos chamavam-me “Célia”, outros “Celium”, mas ainda ninguém me explicou porque me puseram esse nome. Sou jovial, apesar da minha longa idade, e esforço-me por me apresentar asseada e de agradável aspecto. Sei que tenho encantos, que sou prazenteira, mas também, por vezes, que me arrebato, quando a isso me obrigam, chegando mesmo a tornar-me torrencial, ouvindo então um monte de lamúrias e queixumes, que reconheço serem justas. Mas, entre amores e desavenças, não deixo de me comportar como anjo protector.
Atravesso as quatro freguesias que constituíam o núcleo antigo do concelho, e por isso terem-me sempre considerada como traço de união entre os goienses, facto de que muito me orgulho. Através dos meus vinte e cinco quilómetros dentro do concelho, passo por baixo de uma dezena de pontes, desde a Real, em pedra, de três arcos, a mais velha, já com cinco séculos de vida, até à noviça, aquela de madeira, elegante e de ar moderno, depois do Cerejal (aqui para nós, são as de que mais gosto), e julgo que, por toda a parte, deixo um rasto da minha forte personalidade.
Nas freguesias serranas, Colmeal e Cadafaz, serpenteando por montes e vales, vão-se-me revelando vestígios de um passado antigo. Passo por moinhos abandonados, vejo ao longe as “Buracas dos Mouros”, talvez vestígios de minas exploradas noutros tempos, bem como a extensa “Levada dos Mouros”, também ela talhada na rocha, que, segundo a lenda, fora aberta por um cavaleiro, para levar água até Bobadela, onde residia a princesa sua amada. Coisas que vou ouvindo, por aqui e por ali, com as quais me delicio ao longo da viagem.
Antes da Cabreira, um conjunto de antigos lagares e tulhas, junto ao rio, é uma autêntica relíquia do passado, memória do espírito comunitário da vida destas gentes. Tinham estatutos aprovados pela população e uma Comissão de Lagares eleita democraticamente. Acontece que aqui, na encosta da minha margem direita, situava-se uma das áreas de estanho e volfrâmio, onde, durante a Segunda Guerra Mundial, se processaria uma exploração mineira muito intensa. Foi ali mesmo, junto às tulhas, na junção da ribeira do Lagar comigo própria, um local abundante de minério de aluvião, que fez rodopiar a cabeça de muita boa gente. Ficaria então estupefacta ao ver aquele enxame, de indígenas e forasteiros, conspurcando (e de que maneira!) as minhas próprias águas e sacando avidamente das minhas entranhas o almejado ouro negro. Onde antes era um local ordeiro e pacato, centenas de “mineiros” amontoavam-se, sem rei nem roque, uns procurando trabalho honesto, para equilibrar o seu orçamento familiar, mas outros com subtis artimanhas, ludibriando as autoridades e o seu vizinho. Que me fez entender como é volúvel o ser humano, quando a tentação se lhes apresenta..
Prosseguindo o caminho, vou passar mais abaixo pela Central de Monte Redondo, obrigando-me agora a esforços redobrados. Nada que seja extraordinário, mas sempre alimento duas unidades de produção de energia eléctrica, uma de 400 KVA e outra de 175 KVA, instaladas pela extinta Companhia de Papel de Góis. Sou compensada pelo orgulho que tenho de os meus antepassados terem gerado electricidade e fornecido iluminação pública à vila de Góis, ainda antes de a cidade de Coimbra a possuir! Está a completar-se um século que realizámos essa proeza, a vila de Góis iluminada a lâmpadas incandescentes. Segundo conta a minha avó, que Deus a guarde, o Mondego jamais me terá perdoado um tal atrevimento.
Saindo das turbinas, vou descendo a caminho da vila, retemperando forças. Cortejo respeitosamente os três arcos da Ponte Real, concluída no tempo de D. João III, e entro no meu troço final, lentamente, julgo que de um modo majestoso, em terreno chão de fundo largo, tentando animar os turistas e deliciar os meus amantes. Depois de um cúmplice pestanejo a Santo António, o casamenteiro – da sua capela, os nossos historiadores ainda não conseguiram saber ao certo a idade, dizem que talvez do século XVI –, torno-me galanteadora, aos pés do irresistível Cerejal. E ali fico, enamorando-o por uns aprazíveis momentos, mas sempre com o devido respeito, já que o classificaram como Parque de Interesse Público.
Agora mais serena, chego a Vila Nova do Ceira, espreguiçando-me nas suas várzeas e espraiando-me pelas belas margens com que me quiseram presentear.
E depois, a despedida. No sítio do Cabril, no Cerro da Candosa, com a sua pequena ermida lá no alto, onde o povo vai adorar a Virgem, invocando-a com o nome de Nossa Senhora das Candeias, ou, para outros, de Nossa Senhora da Candosa. Padroeira dos varzeenses, é motivo para no local se realizar anualmente, em meados de Agosto, uma tradicional festa que, desde há muito, é pertença da memória do concelho. A partir de ligeiros vestígios encontrados, há quem questione se ali não teria havido uma fortaleza ou uma povoação, para defesa daquele vale majestoso de horizontes sem fim.
E ouvi contar uma história, talvez seja lenda, talvez não, em que o grande rochedo estaria outrora fechado, de onde a água tombava em cascata. Havia então uma grande lagoa, estendendo-se desde a Candosa até à vila de Góis, bordando as povoações de Bordeiro e Alagoa, que por isso justificavam a sua denominação. Na carta de doação da povoação vizinha Serpins, passada por D. Afonso Henriques, é referido a lagoa de Sacões, o que dá credibilidade a essa suposição. Mais tarde, ter-se-á cortado o rochedo, com intuito de desfazer a lagoa, e, com o abaixamento das águas, obter-se aquelas terras férteis que conformam as várzeas. Ouvi também de outra lenda, que a imaginação do povo é muito fértil, que a Senhora das Candeias, muito linda, protegida de capuz e de candeia na mão, ia pela calada da noite destruir a muralha que os mouros tentavam sucessivamente erguer para refazer a lagoa. E, desse modo, os varzeenses conseguiram conservar as suas boas terras, ao mesmo tempo que baptizavam carinhosamente a sua santa padroeira. Seja obra do homem ou da natureza, seja ou não com a participação bondosa de Nossa Senhora, é nesse local aprazível, o Cerro da Candosa, que me despeço com ternura e emoção do concelho de Góis. A caminho do Mondego, a quem não deixarei de segredar, “haver sereias sem ser no mar”, como nos diz o poema do hino dos goienses e como eu própria, juro, tenho tido ocasião de verificar.
Para trás, fica a consciência do dever cumprido, de ter proporcionado melhoria de vida aos goienses. Ora irrigando as várzeas e os campos verdejantes, ora dando força às mós e às turbinas, ora alimentando os salmonídeos, ora propiciando encontros amorosos ou outros momentos de prazer, como pescarias, velejo, desporto. Ou apenas com o dolce fare niente. E leguei-lhes um grande espólio de encantos e belezas, de lendas e fantasias, onde os poetas se podem inspirar. Nas suas margens, em frente ao palácio que mandara construir e para onde se acolhera, fugindo às amarguras e aos enganos da Corte – já lá vão quase cinco séculos! –, Dom Luís da Silveira, conde de Sortelha, Senhor de Góis, um dia poetizou:
Ao longo desta ribeira vivo vida descansada e a derradeira, esta é vida descansada para quem já não quer nada. (...) Não me deis, quer mo creiais quer se me, senhor, não creia, mas eu folgo de ser mais o primeiro desta aldeia que o segundo donde estais.
Para defesa da minha honra, que muito a prezo, peço licença para lembrar que o termo ribeira, referido nestes versos, não significava forçosamente "rio pequeno" pois igualmente tem o sentido (sobretudo naquela época) de margem, de porção de terreno banhado pelo rio... Muito obrigada pela vossa atenção.”
(de Conhecer Góis, revisto, de João Nogueira Ramos)