Este pequeno resumo é retirado de uma monografia de autoria do Professor Doutor João de Castro Nunes, após um seu exaustivo estudo deste petróglifo. Trata-se de uma edição do Museu da Câmara Municipal de Góis *, de 1959, com a colaboração de A. Nunes Pereira e A. Melão Barros.
«Quem, no concelho de Góis, tomar a estrada nacional nº 2, de Chaves a Faro, e ao km 290.85, na Portela do Vento, onde se forma o desvio para Castelo branco (estrada nº 112), meter pelo caminho carreteiro (...), avista ao fundo, à esquerda do leito do talvegue, uma espécie de plataforma debruçada, a meia encosta, para o amplo anfiteatro de montanhas que se lhe abre em frente: é a Pedra Letreira. Trata-se de um afloramento de xisto ante-câmbrico, de estratificação vertical, correndo de sudeste para noroeste, em cuja superfície, horizontalmente aplanada, há uma série de figuras gravadas e tidas, pelas gentes das imediações, por estranhos caracteres de enigmático letreiro, obra de mouros que teriam ali deixado apontamento de dos seus legendários tesouros encantados ou das suas fabulosas riquezas escondidas por aqueles sítios. (…) Perdido para o povo o seu verdadeiro e primitivo significado, Deus sabe quanto a Pedra Letreira lhe povoa de lendas o espírito, ávido de maravilhoso:
Em frente à Pedra Letreira há três minas em carreira: uma de ouro, outra de prata e outra de peste que mata!
É que não há tradição sem lenda, como não há ruína sem hera. Ela é como um penhor da sua antiguidade, por vezes tão remota que se perde o sentido. Foi o que se deu com o nosso monumento. (…) Foi num destes afloramentos, a que já atrás nos referimos, que ele gravou as insculturas (…) o processo utilizado para insculpir as figuras que integram o petróglifo, sem dúvida que foi o da abrasão (…)Tecnicamente, trata-se de um litótribo, do género dos de Azabal e Puerto del Gamo, na região de Cáceres, ou de Ribe Vides, Poço da Moura e Sortes, em Trás-os-Montes, para citarmos tão-somente alguns dos mais característicos. (…) salta à vista a natureza do objecto insculturado, ou seja, o arco e a flecha (…). Incluída a haste, é de 70 cm o comprimento da flecha, cuja ponta possui os lados quase rectos e a base ligeiramente convexa, fazendo lembrar um determinado tipo eneolítico de ponta da seta, em sílex, não muito frequente, é certo, mas em todo o caso bastante bem documentado na região (…) vêem-se ainda no petrófilo, em especial no quadrante sudoeste, vários outros litótribos figurando pontas de seta de base sensivelmente recta, no geral com a respectiva haste (…) estaremos assim, pelo que a esta propriamente diz respeito [Pedra Letreira], em pleno mundo eneolítico, dando ao termo aquele sentido amplo que por vezes se lhe sói atribuir. (…) há no petróglifo uma série de representações que não vacilamos em interpretar como verdadeiras alabardas, devendo entender-se por estes instrumentos aquelas folhas de sílex parecidas com as pontas de seta, mas no geral de maiores proporções (…) de forma em geral mais ou menos triangular, havendo-as também, no entanto, de forma acusadamente romboidal (…). Esta presença das alabardas no nosso monumento é, pois, fundamental para a sua datação e caracterização culturológica, dado que “tais elementos determinam claramente a denominada cultura de Los Millares, da estação típica desse nome, em Espanha, na sua fase mais recente e que julgamos poder intercalar entre 2000 e 1700 antes de Cristo, aproximadamente”, opinião abalizada que aceitamos em princípio… (…) a Pedra Letreira, tanto pela profusão das alabardas que contém, como pelo espírito peculiar que estas possuem, constitui presentemente, no seu género, um monumento sem réplica no solo peninsular, muito contribuindo para lhe conferir especial interesse a circunstância, que importa acentuar, de o monumento se achar culturologicamente ambientado (…) Daqui se depreende, consequentemente, o seu excepcional valor como termo cronológico para todos aqueles monumentos com os quais o nosso possa ter qualquer afinidade positiva… (…) Mais ou menos ao centro do petróglifo, na bissectriz do quadrante noroeste, inscrita num rectângulo tanto ou quanto irregular, uma figura constituída por um triângulo isósceles (…) figura que por seu turno encerra um segundo triângulo bastante mais pequeno (…) evoca-nos de longe, na sua estilizada esquematização, uma espécie de máscara ou figura humana, o que aliás se casaria bem com o lugar preferente que ela a ocupa no petróglifo (…) Visada, no nosso monumento, pela flecha posta no respectivo arco, ele é, de resto, como que a figura dominante e determinante do petróglifo, no centro de uma série de multiforme de representações de armas… (…) há a registar duas originalíssimas figuras executadas com certo esmero, que nos dão, com efeito, a impressão de se tratar de outras tantas representações esquemáticas de escudos, impressão a que não é de toda estranha, com certeza, a sugestão da presença no mesmo monumento de outras muitas representações de armas, tais como as alabardas e as flechas. (…) Do que não há dúvida, porém, é de estarmos em presença de uma notável manifestação de arte rupestre, cujo horizonte cultural e cronológico se perfila aos nossos olhos com meridiana clareza adentro de uma das fases mais individualizadas da Pré-história ocidental, ou seja, do mundo megalítico. À luz desta evidência e dado o parentesco entre o nosso monumento e os da região hurdana, em especial o do Puerto del Gamo, eles seriam, pois, como outros tantos marcos no caminho, a assinalar a rota continental dos buscadores de estanho que, desde os centros mineiros de Almeria e Los Millares, teriam alcançado aqueles sítios, acabando por expandir-se pelo vale aurífero do Alva, onde a necrópole dolménica da Lomba do Canho, a dois passos de Arganil, atesta bem a sua presença e permanência… (…) O mais que para já se nos afigura lícito aventar é tratar-se de representações petroglíficas de cenas ou actos rituais da vida anímica das tribos, que ao longo do segundo milénio antes de Cristo, no apogeu do Bronze, revolveram as entranhas e os barrancos daquelas serranias à cata do famigerado estanho, a paredes meias com o ouro, que mais tarde o Romano havia também de cobiçar. E dentro destes termos, vagos mas técnicos, fica a porta aberta para toda a classe de interpretações, mais ou menos plausíveis, que possam acudir ao nosso espírito: estela funerária, monumento bélico, lugar de culto, simples manifestação de práticas de índole mágica…»
* O Museu Municipal foi instituído pela Câmara Municipal em Outubro de 1957, sob a direcção do próprio Dr. João de Castro Nunes, não tendo contudo sido materializado.