Em Vila Nova do Ceira «Desde tempos longínquos, na época do verão existe uma levada, por onde se afasta do seu curso normal, a água do Sotam, para as regas. Este desvio de águas tem início, a uma distância de uns dois mil metros da povoação. Todos os anos, no princípio da época – e isto é tradicional – aquelas famílias são obrigadas a dar uns tantos dias de trabalho, pata limpeza da dita levada, porque ela, em certos sírios, chega a ficar completamente entupida, por causa dos barrancos que desabam e vêm descendo, duma das serras, ou seja, do lado direito. Em extensões, por vezes de cinco metros, a levada necessita, para o seu bom funcionamento, de alguns trabalhos de renovação, e em outros sítios – quanto mais não seja – exige que se lhe cortem as ervas e as silvas, que nascendo nas suas bordas, obstruem a corrente. Nestas operações minuciosas de reparo e preparação, gastam-se pouco mais ou menos cerca de duas semanas de serviço revezado, onde trabalham, todos os dias, turnos de dez ou quinze pessoas. À entrada da povoação, porém, já essa limpeza se torna mais fácil, pois a passagem das águas corre ao lado dos arruamentos, atravessando o caminho, dum lado para o outro, indiferentemente, em qualquer ponto que seja preciso, chegando a entrar e sair, por propriedades muradas, onde há fiscalização, para se prevenir contra os desvios secretos. Coma se vê, a água da levada é de logradouro comum, mas deverá ser gasta com conta e, portanto, existem estabelecidas umas leis, ou costumes regionais, objecto principal desta narrativa que, alargando na medida do possível, procurará darem singelos traços, o retrato duma povoação portuguesa, de rústico encanto campesino. Assim, periodicamente, fica nomeado pela administração do concelho, como atrás se disse, um homem de idoneidade, aquém chamam “juiz da água”. Esta instituição, consuetudinária, de “juiz da água”, como todas as instituições orgânicas da sociedade, tem dado sempre origem a naturais dissidências. É que, realmente, o “juiz da água” é favorecido com alguns privilégios inerentes ao seu cargo, como compensação da sua difícil missão de julgador dos direitos dos seus vizinhos. Em primeiro lugar, o “juiz da água” tem de ser um homem experimentado e prático, sabendo calcular a abundância das águas do ano corrente. Tem a obrigação de regular as regas, marcando as horas de água para cada propriedade. Deverá organizar, por assim dizer, um quadro estatístico, fixando as horas, os sítios e os nomes de cada lavrador serventuário das águas e, finalmente, julgar das contendas e disputas que possam haver nessa matéria de direito, com a maior imparcialidade. Várias são as hipóteses que o “juiz da água” pode encontrar e muitas faz vezes bem difíceis de resolver. Por exemplo, quando a terra bebe mais água, ou porque se encontra mais seca, ou porque o trajecto a percorrer esteja cheio de buracos das toupeiras, ou ainda porque haja alguém que se entretenha a retirá-la do rego com baldes, para ir regando os alfobres – pois estes não podem aproveitar a água corrente – assim como, pode suceder a água ser cortada pelo vizinho, alegando a marcação da hora, teriam de ficar áreas inteiras de terreno cultivado, sem uma gota de água, e a todos esses casos ele tem de dar providências rápidas e enérgicas. Entretanto, acontecia que quando a água chegasse às propriedades do senhor “juiz”, este regaria o tempo eu quisesse – e para isso era “juiz” – diziam à boca pequena os vizinhos. Desta maneira, era evidente que todos aspirassem ao nobre cargo, mesmo que tivessem de suportar contrariedades, que podiam variar de desconsiderações a insultos ultrajantes, despejados à queima-roupa por aquele que fosse obrigado pela sua autoridade a reconhecer o seu erro ou o seu criminoso propósito e aceitar silenciosamente o castigo. Como aquele povo fosse pequeno, continuando a sê-lo até hoje, apenas quatro ou cinco homens de mais competência eram indicados para as funções de “juiz da água” e raro acontecia que a mesma pessoa chegasses a exercer o seu mandato durante os dois anos previstos, nos costumes da terra. Calcula-se assim por quantos embaraços e percalços deparava a função de “juiz da água”. Imediatamente abaixo, na hierarquia, estavam os dois suplentes, que substituindo o efectivo nos impedimentos, por sua vez pretendiam as mesmas regalias do “juiz”, mas isso nunca passou de mera pretensão, pois os horários da água praticamente nunca o permitiam.» (…)
(de O Juiz da Água, de Barata Dias, 1942)
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No Soito «O Soito sempre foi uma terra abundante em água, porque é uma das aldeias mais baixas da freguesia, aproveitando assim do rio e das ribeiras para regar as suas terras, algumas das quais designadas de lameiros, pelo facto de, entre o Inverno e a Primavera, serem irrigadas de forma permanente, a fim de produzir a erva para os animais, cujo último corte era destinado ao feno (erva seca), guardada nos palheiros, para consumo sobretudo nos dias mais invernosos, em que o gado não saía dos currais Apesar disso, as terras mais junto da aldeia, onde se cultivavam sobretudo as hortas, disputavam uma quantidade nem sempre abundante de água, que era / é captada na “ribeira”, no desembocar das águas do Ribeiro de Além e da Quinta das Águias. Aí havia três poços (actualmente em ruínas) que, após estarem cheios (uma a duas vezes ao dia, dependendo da quantidade de água), eram abertos, sendo a sua água transportada até ao Soito, por uma levada de cerca de dois km (hoje substituída por um tubo). A água destes poços, que demoravam cerca de duas horas a serem esvaziados, uma vez chegada ao Soito pela dita levada (alguma perdia-se no caminho), era depositada num poço de terra e pedras de grande dimensão situado no cimo da aldeia, hoje substituído por um tanque de cimento. A distribuição da água era feita segundo escritos antigos, ainda hoje existentes, com base na dimensão de cada um dos terrenos de cultivo que a ela tinham direito, mas, como acontecia em muitas outras terras do país, originava por vezes algumas discórdias, dado que algumas pessoas menos conscientes abusavam da sua utilização esquecendo os direitos dos outros. A fim de resolver as “guerras da água”, os antigos habitantes resolveram então colectivamente instituir a figura do “Juiz da Água”, que era um homem designado por todos os agricultores para controlar a utilização da água por cada uma das propriedades, de acordo com o tempo a que tinha direito. Este juiz, que era pago em géneros agrícolas pelos diversos proprietários, tinha como função abrir o poço da aldeia e encaminhar água pelas levadas em direcção às terras que naquele dia iriam ser regadas; chegada a água ali, virava o “tornadoiro” * e controlava o tempo de rega, cortando a água em direcção a outro destino, quando este terminava, ainda que o terreno não tivesse sido todo regado. Era necessário cumprir a “lei” e o juiz era implacável. Os seus instrumentos eram o relógio, para controlar o tempo de rega, e um pequeno sacho, para levar a água para o percurso desejado e também para desobstruir as levadas e os rêgos. O último “Juiz da Água" do Soito, que exerceu a sua função até cerca de 1970, foi o “ti” António da Neves, mais conhecido por ti António do Balcão (dado que a sua casa, à entrada da chamada “rua da carvalha”, tinha um pequeno balcão e um alpendre). Era natural de Aldeia Velha e casou no Soito e o seu sacho (a sua ferramenta de juiz da água) é uma das peças que integram o acervo do “Espaço Museológico do Soito”.»
António Duarte (do site da U. P. F. C.)
* Desvio da água para o local desejado, através da colocação de torrões (ervas com terra) no curso inicial.