Inesgotável fonte de riqueza e abundância esquecida em plena serra
De Goes para montante, o Ceira muda inteiramente de aspecto. As montanhas aconchegam-se umas sobre as outras, como gigantes petrificados pelo frio. O “Thalweg” descreve uma linha torturada e profunda, ao longo do qual as águas deslizam sobre o seu leito de pedra, límpidas e transparentes como puríssimo cristal. Assim começa a região da serra abandonada, selvagem cortada de ásperos caminhos, onde só a custo se pode transitar, desligada da civilização e do mundo como se as vertentes Três quilómetros acima da encantadora vila estabeleceu-se há anos uma central destinada à produção de energia eléctrica, a cuja visita na devida altura pormenorizadamente tenho de me referir. Aí se detém o esforço civilizador do homem aproveitando inteligentemente as forças naturais: o resto é escassamente aproveitado conforme as exíguas necessidades da região, quer utilizando uma parte da energia hidráulica em azenhas e lagares primitivos, quer irrigando as hortas e os lameiros marginais, que as enxurradas do inverno fertilizam à maneira do Nilo. Meia hora de caminho andado pelas atalhos da montanha e eis-nos pelo longe, muito longe de tudo. É como se penetrássemos numa zona encantada. Do alto do Rabadão, que domina a planície do noroeste a setecentos metros de altitude, depara-se-nos o interior da serra, virgem de todo o “macadama”, com as suas aldeiazitas onde branquejam modestíssimas capelas, as suas veredas caprichosamente talhadas pela encosta, os seus olivais, os seus vinhedos, a sua melancolia. Pelas barrocas de onde, sobre o fundo do vale, se despenham as águas das montanhas, vêem-se florestas cerradas de castanheiros e na sombra druídica da sua folhagem nascem tranquilamente os rebanhos de ovelhas. Lá abaixo, o Ceira, o meu rio Ceira, a quem eu quero com o mesmo ingénuo afecto de ma criança por um brinquedo, sussurra e passa. Nos açudes que a cada momento que a barram acorrente sinuosa, a água referve em borbotões de espuma, depois seguem-se as vagens tranquilas, como a calma sucede à tempestade, e o rio adormece à sombra dos salgueiros, reflectindo o céu como uma lâmina de aço. Era por esta época do ano que nesta vale ignorado faziam regularmente a sua aparição os ourives nómadas do outro lado da serra. Desciam até junto do “Thalweg” e percorriam as fragas, recolhendo e levando areias, de que extraíam ampla provisão de palhetas de oiro. O curso do Ceira deve com efeito passar, desde os contrafortes da serra do Açor, em algum misterioso filão de que hoje se encontra perdida a tradição secular. Já no tempo dos mouros e dos romanos se fez nas suas margens uma intensa exploração mineira, de que restam ainda, aqui e além, seguros vestígios, mas a primeira condição para que se efectuassem hoje novas pesquisas consiste numa estrada transitável – e esse mito não logrou ainda atingi-lo a desprotegida região. Na verdade, uma estrada que percorresse o vale teria como efeito imediato a transformação completa das condições actuais de existência, despertando actividades e iniciativas que não podem de forma alguma desenvolver-se num meio hostil. A Suíça portuguesa, a par da sua paisagem que é das mais surpreendentes que tenho visto, encerra tesouros inestimáveis que urge valorizar. Lá está o Ceira, fonte de energia, com desníveis frequentes onde urge multiplicar as instalações produtoras de electricidade, única forma de transportar a distâncias enormes a força motriz de que carece a indústria, tão cruelmente onerada pela tirania do carvão estrangeiro. Lá estão as minas de zinco, à espera que legiões de trabalhadores rasguem o ventre da terra para extrair o utilíssimo metal que tão caro nos custa mandar vir de fora, lá estão, lá pode ir vê-los toda a gente, jazigos riquíssimos de ardósia, de onde se extraem lousas tão finas como uma folha de papel, lá estão as matas de castanheiros seculares, de onde, para se extrair preciosa madeira, apenas falta resolver o problema dos transportes. O Ceira, convenientemente explorado, é para a região e para o país inapreciável fonte de natural riqueza. Civilizem-no um pouco, e ele dará tudo o que lhe pedirem. Piscícolo em extremo, são famosas as suas magníficas trutas, que vivem de preferência nas águas frias e batidas da rocha, e os nossos mercados das cidades inteiramente desconhecem. Abundam nele as duas variedades: a truta “salmoneja” e a “sapeira”, que infelizmente não tardarão em desaparecer se não for encontrado eficaz remédio contra os destruidores da fauna fluvial, prosélitos impunes da dinamite e do cloreto. O repovoamento do rio, em que já por vezes se pensou com exemplares da estação piscícola do rio Ave, e a efectivação dos regulamentos de pesca fluvial, fariam do Ceira um viveiro único e capaz de abastecer os mercados mais exigentes. E dizer que tudo isto depende de alguns quilómetros de estrada! E do prolongamento da via férrea que liga Coimbra com a Lousã, de que há trabalhos e estudos feitos há mais de vinte anos!