Os Goes Na nossa memória colectiva, a doação das terras de Góis feita a Anião Vestaris por D. Teresa, viúva do Conde D. Henrique, regente do Condado Portucalense, é um marco da constituição do nosso espaço concelhio. A doação foi feita com a finalidade de se reforçar a defesa contra os mouros, numa zona que então era fronteiriça entre os reinos cristão e mouro e onde se lutava pelo domínio das terras. O filho de D. Teresa, Henrique, então apenas com cinco anos de idade e que seria o primeiro rei de Portugal, apoiar-se-ia nesse cavaleiro, juntamente com outros das regiões vizinhas, para prosseguir a Reconquista em direcção ao sul, proporcionando a constituição do país independente que somos. Os primórdios da consciência colectiva do povo de Góis remontam pois a essa época. O ano 1114, em que foi feita a carta de doação, é naturalmente uma data simbólica, como é igualmente simbólico o actual dia do feriado municipal, 13 de Agosto, relacionado com essa mesma doação. Não sabemos se anteriormente Góis já era um território com alguma autonomia administrativa. Mas é provável que na época não constituísse um município (do latim municipium), ou seja uma entidade territorial, administrada pelos seus cidadãos, como se já verificava noutras regiões. Nem que houvesse um concelho (do latim concilium, reunião), no sentido de assembleia dos vizinhos, para tratar dos assuntos de interesse comum. Os actuais concelhos ou municípios (com o tempo, estas expressões passaram a ser sinónimas) não se criaram a partir de outras entidades anteriores. Durante a época em que fomos povoados por muçulmanos, era outro tipo de administração pública, diferente da que foi depois constituída. Ao contrário da freguesia, que remonta à tradicional paróquia, um povoado que crescia à volta de uma igreja, sob administração eclesiástica, os concelhos são instituições puramente administrativas, sob alçada de um poder central. O concelho de Góis, passado que foi o período muçulmano, terá pois emergido pouco a pouco, à medida que a fixação das pessoas se ia refazendo, a vida social se ia estabilizando e as circunstâncias impondo a necessidade da participação dos seus habitantes na vida municipal. Por isso, na doação a Anião Vestaris, não há referência a qualquer foral, que é aquele documento que regula as relações entre os habitantes de uma determinada área e a Coroa ou o Senhor das terras. Referia-se mesmo que a sua função era de as povoar. O primeiro foral em Góis que se tem conhecimento data de 1314, no tempo de Gonçalo Vasques de Goes, um dos donatários de Góis, sendo ali então já referida a designação de concelho. E ao longo desse século há informações que revelam a existência de uma estrutura administrativa organizada, na base de privilégios, de usos e costumes antigos, com vereadores, juiz, escrivão, alcaide, e forte participação dos “homens-bons”, ou sejam, os que, não pertencentes às classes privilegiadas, representavam os habitantes.
Pouco se conhece da nossa História antiga, por poucos testemunhos terem chegado até aos nossos dias, pese embora o esforço feito por alguns historiadores na sua procura. Mas, por alguns deles, temos conhecimento do exercício de actividade autárquica, com casos elucidativos da participação e da interferência dos habitantes na vida comunitária. Não se pense que os Senhores poderiam fazer o que lhes bem apetecesse. Para além de o poder real ter os seus representantes, como os juízes de fora, integrados nas Câmaras, ou os corregedores, que inspeccionavam a justiça, e os provedores que zelavam pelos interesses da Fazenda Real, os Senhores tinham obrigações para com os vizinhos. A título de exemplo, e também de curiosidade, foi o caso ocorrido no ano de 1373, no Largo do Pombal, na vila de Góis, sob um velho carvalho, hoje já desaparecido, junto à fonte pública (na ausência de espaço coberto, era comum as assembleias dos habitantes realizarem-se ao ar livre, normalmente à porta da Igreja Matriz ou sob uma árvore secular). Martim Vasques de Goes era na época o senhor de Góis (aliás, uma personalidade importante na Corte de D. Pedro, como seu amigo e conselheiro). Contrariando as normas do morgado das terras de Góis, Martim de Goes tinha resolvido doar as terras ao seu filho predilecto Nuno, o que originara uma forte contestação de um outro filho, Eduardo, e deixara preocupada toda a comunidade goiense pelas consequências que daí poderia advir (ainda estava presente, em todos eles, as grandes lutas, com mortes, pela posse das terras de Góis, também por motivos idênticos, e que obrigara mesmo o rei D. Dinis a intervir pessoalmente). Pois, já perto do fim da sua vida, Martim Vasques de Goes, consciente do mal que fizera e disposto a repará-lo, reúne-se em assembleia pública, e, solenemente, sob aquele velho carvalho no Largo do Pombal, pede desculpa à população, entregando a carta de revogação da doação das terras.
O senhorio de Góis viria a permanecer sempre no seio da mesma linhagem. Ao longo de mais de sete séculos, de 1114 a 1832, os senhores de Góis sucedem-se de geração em geração, até que, em sequência da Revolução Liberal iniciada em 1820, foi posto termo de vez às estruturas do “Portugal Velho”. Ao longo dos primeiros quatro séculos (de 1114 a 1520) os senhores da nossa terra eram os Goes (só mais tarde se passaria a escrever Góis), que tiveram origem com a formação do senhorio, tendo sido muitos deles, figuras de prestígio na vida social e política do país. Entre outros, além dos acima referidos, recordemos Gonçalo Dias de Goes, braço direito de D. Afonso Henriques nas lutas da Reconquista e na vida política de Coimbra e arredores; Vasco Farinha de Goes, vassalo e mensageiro da Corte de D. João I e que estabeleceu o morgadio de Góis, contribuindo para a unidade do nosso concelho; Mécia Vasques de Goes, que, ficando viúva muito nova, foi figura de forte personalidade, com presença junto da Corte e sabendo defender com denodo os interesses das terras de Góis, na luta travada entre os seus filhos; e Fernão de Goes, cavaleiro-mor dos três primeiros monarcas da segunda dinastia e com relevantes serviços prestados ao país.
A época dos Goes vai até ao início dos anos quinhentos, quando, por quebra de varonia, o apelido Silveira viria a substituir o apelido Goes. Beatriz de Goes foi o último Senhor Goes das nossas terras, pois, com o casamento com Diogo da Silveira, jamais se daria o apelido Goes aos descendentes. Vivia-se numa sociedade fortemente patriarcal, com o hábito de os pais darem aos filhos mais relevo ao apelido paterno, tal como ainda hoje ainda sucede frequentemente; mas, por outro lado, certamente também por os Silveira terem interesse em valorizar o seu nome, desvalorizando o de Goes, que na época era muito prestigiado. Com Beatriz de Goes, os Goes desapareciam no nosso concelho e começavam os Silveira.
Os Silveiras Era uma família também poderosa, com personalidades muito próximas dos nossos reis e da Corte em geral. Foram seis os Silveira que foram senhores das terras de Góis, numa época que praticamente durou um século. Luís da Silveira I, primeiro Conde de Sortelha, é o mais conhecido entre nós, pelo seu prestígio e pelas grandes obras que efectuou na vila, tendo ficado imortalizado na bela estátua que se encontra na Igreja Matriz. Entre os restantes, refira-se Diogo da Silveira, ligado à construção do antigo Hospital que tanta fama daria a Góis. No princípio do século XVII dá-se outra vez uma quebra de varonia. Luís da Silveira II, terceiro conde de Sortelha, seria o último varão Silveira, e com a morte das suas duas filhas, que sucessivamente herdaram o senhorio de Góis, desapareciam de vez os Silveira do nosso concelho.
A ascensão da burguesia rural Com a morte de Luís da Silveira II, ocorrida em 1617, ia verificar-se uma mudança significativa no senhorio de Góis. Os seus descendentes, que se entroncaram nas famílias Castelo Branco e Lencastre, afectas a outras Casas do país, deixaram aparentemente de se interessar pelas nossas terras. É certo que lhes pertencia por lei o senhorio e dele recebiam dividendos, mas não as habitavam e parece ser muito diminuta a sua interferência na sociedade local. O seu palácio, os Paços Novos que fora construído à beira do Ceira por Luís da Silveira, e que foi local de animação da vida social em Góis, entraria em decadência. Era então o tempo do domínio espanhol. E depois iniciava-se a Restauração, com o aparecimento de uma nova burguesia, com consequências na administração do país. O decréscimo da influência local dos senhores de Góis coincidiu com a formação dessa burguesia, agora mais ligada à propriedade rural, criando riqueza e fazendo surgir novas personalidades na política local. Já não eram os aristocratas, ligadas à corte, mas os que estavam ligados à terra fundiária, fazendo-a progredir. Pela vila de Góis e pela Várzea de Góis, as duas localidades com maior força económica e social (a freguesia de Alvares não pertencia ainda ao concelho), e nos seus arredores, formaram-se morgadios e casas senhoriais. O morgadio da Capela, o morgadio da Lavra, o Baião, o Salgueiral, a Casa da Cancela, a Casa da Costeira (como foi também a Casa das Tulhas em Chã de Alvares, no então concelho de Alvares), entre outras, cujos nomes têm sido apagados pelos tempos, foram constituídos ao longo dos séculos XVII e XVIII. A estas Casas ficaria ligada a grande maioria dos principais gestores da administração pública local depois do fim do regime dos senhorios, quer tenham sido nomeados pelo governo, quer eleitos pelos autóctones, como veremos mais adiante. Foram os Figueiredo, os Barreto Chichorro, os Tavares de Pontes, os Veiga, os Antunes de Carvalho, os Lopes de Carvalho, os Nogueira Ramos, os Dias Nogueira, a que se juntariam, após a integração da freguesia de Alvares, os Cortez e os Rebelos Arnaut. Todos eles directamente ligados à economia da nossa terra.
Pero Rodrigues Barreto é o rosto que marca o início deste ciclo de ascensão da nova burguesia. Não que não houvesse outras pessoas de prestígio, mas é aquele que a História deixou uma marca mais forte, quer na toponímia (a agora denominada rua da Quinta tinha o seu nome), quer pelas suas propriedades e morgadios, que se prolongaram por algumas gerações e que, nas suas ramificações, constituíram o maior grupo económico de uma vasta zona da Beira. Supõe-se que tenha falecido antes de 1640.
Neste período de dois séculos, compreendido entre os princípios dos anos seiscentos e oitocentos, ou seja, até ao início das guerras liberais, o poder dos senhores donatários conviveria com o poder da nova burguesia. Os primeiros afastados do concelho, aqui apenas usufruindo os proveitos que a lei lhes concedia, os outros, habitando, trabalhando e investindo localmente. Seria com a Revolução Liberal que se formava o novo município, com as “Câmaras Populares”, em que o poder passava de vez para as oligarquias locais. Como que simbolicamente, o terreno e o espólio do Paço Novo, nas margens do Ceira, o centro do poder dos antigos senhores de Góis, seria trespassado do último senhor de Góis, D. Pedro José Maria Castelo Branco Sá e Meneses, 7º Marquês de Abrantes, para Francisco Barreto Botelho Chichorro de Vilas Boas, que os comprou, e deste para José Fernandes Antunes de Carvalho, duas fortes personalidades do poder local no início da novo município.