Recordemos um pouco, e em breves palavras, o momento político da época.Em 1851, quando reinava D. Maria II, um golpe político-militar dava origem ao movimento da Regeneração, estabelecendo um regime estável com paz civil e social, que duraria praticamente até 1890. A Regeneração era caracterizada por uma estabilidade política, na base de um rotativismo partidário, que permitia fazerem-se reformas importantes nas áreas económica, administrativa e política. Anteriormente, não havia partidos políticos propriamente ditos, na prática a sociedade política dividia-se entre “moderados” e “radicais”. Com a Regeneração, os grupos políticos e as fracções vão-se estruturar à volta de duas organizações, cujos chefes se alternavam no poder: o Partido Regenerador, mais devotado à Carta Constitucional, e os que mais tarde viriam a constituir o Partido Progressista, herdeiro do Setembrismo, do espírito da Patuleia. O Partido Regenerador, o primeiro partido estruturado digno desse nome, conservador, tinha a sua base social constituída principalmente por grandes comerciantes, proprietários mais abastados e financeiros. Com uma boa máquina partidária eficaz e numa época em que era praticamente inexistente uma opinião pública esclarecida, em que o direito ao voto estava reduzido a um universo muito pequeno e manipulado por caciques, o partido Regenerador manter-se-ia activo praticamente até ao final da monarquia. O Partido Progressista, fundado apenas em 1876, por herança dos antigos Partidos Histórico e Reformista, constituía o pólo mais à esquerda, englobando os descontentes e lutando contra o sistema. Tinha o apoio da população pequeno-burguesa. Pelo caminho, no final da década de 60 e na de 70, haveria uma nova etapa. Uma nova geração de personalidades agitaria a sociedade, tentando modificar a situação social, política e cultural, introduzindo as correntes que se vinham desenvolvendo noutros países. São deste tempo, Antero de Quental, Teófilo Braga, Eça de Queiroz, Oliveira Martins e muitos outros. É no meio desta geração de 70 que germinam concepções republicanas (e socialistas, já que o Partido Socialista seria fundado em 1875, ainda que só muito mais tarde viesse a ter expressão), com a criação do Partido Republicano em 1876, vindo-se a tornar a maior força política fora do sistema rotativo. Enquanto a oposição republicana se ia fortalecendo, afirmando-se como alternativa ao governo, regeneradores e progressistas alternavam-se no poder, com programas políticos muito idênticos. A oposição estava mais nas palavras e, portanto, pródigo ao caciquismo.
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Posto isto, volvemos a Góis, no interior do nosso Portugal rural, de mentalidade inerte e de caciquismo. Ao ano 1893, nessa época do rotativismo político. Por razões políticas, tinha-se dado, três anos antes, em 1890, uma cisão na Filarmónica Goiense, originando duas Bandas, cada uma conectada com um partido: a Progressista, regida por Joaquim Ferreira, e a Regeneradora, à falta de mestre, pelo seu músico César Dias das Neves. A primeira, que se serve da anterior sala de ensaios sobre a sacristia nova, ficaria alcunhada por “Chata”; a segunda por “Cachimbana”, reunindo-se numa sala da Casa da Quinta (era seu Director Francisco Inácio Dias Nogueira). Estava em vigor o Código Administrativo de 1886, de Luciano de Castro, que estabelecia uma representação das minorias nos corpos administrativos, com a ideia de assegurar a todas as opiniões o direito de se fazerem ouvir, e a faculdade conferida aos vogais de poderem recorrer das decisões das maiorias. O Partido Progressista fora chamado ao poder em 1879 e, como era hábito político, logo tentou substituir o Código anterior por um outro. Após a crise financeira de 1891, sobe ao poder Dias Ferreira, com o mandato imperativo de debelar e sanar de vez as Contas Públicas. Exige-se a audiência dos 40 maiores contribuintes do concelho para a válida deliberação das Câmaras sobre criação dos impostos ou realização de empréstimos, estes últimos sujeitos a severas restrições. Isso iria traduzir-se no novo código de 1895. O que se segue, foi escrito por quem nelas participou, pessoa idónea e estimada no nosso concelho (regenerador, como se verá…), trinta e dois anos depois dos acontecimentos, em Janeiro de 1893:
« Era Presidente da Câmara o finado comendador Sr. Joaquim Marques Monteiro Bastos (progressista), vice-presidente o Sr. José Francisco Mendes (regenerador) e administrador do concelho o Sr. Manuel Nogueira Ramos (regenerador), também já falecido. Segundo a lei, para que o acto eleitoral se pudesse realizar no primeiro dia (7 de Janeiro) era precisa a comparência de 20 eleitores, senão ficaria a eleição para o dia seguinte. No caso de empate, vencia a lista apresentada pelo presidente da Câmara – maioria, ou maioria e minoria, conforme. Ora, os regeneradores contavam com 21 votantes e os progressistas com 19, mas estavam absolutamente impossibilitados de vir à eleição 2 regeneradores, pelo que as duas facções dispunham efectivamente, cada uma, de 19 votos; e como o Presidente da Câmara era progressista, evidentemente os progressistas ganhariam… Mas um progressista (Francisco António Torres, do Inviano) jurara-me, pelas cinzas da filha, que ficaria em casa… Se tal acontecesse, votariam 19 regeneradores e 18 progressistas.Mas se os 19 progressistas votassem? Estavam os regeneradores em sérios riscos de perder, pela primeira vez, a eleição dos 40… Na semana anterior à da eleição, o administrador do concelho, obtendo legalmente uma licença, oficiou à presidência da Câmara, entregando-lhe a administração. Perceberam os progressistas a manobra, pelo que o Presidente da Câmara não abriu o ofício do administrador, conservando-o fechado sobre a mesa das eleições… Chega o dia da eleição. Um pouco antes da hora legal, dava entrada na casa da Câmara os 19 progressistas… E os 19 regeneradores também não demoraram a sua comparência no mesmo local, que já se encontrava atulhado de populares, de um e outro partido. Os progressistas contavam absolutamente com a vitória, tanto que tinham a sua música pronta a sair para a rua à primeira voz… Bate o relógio público da vila 9 horas… há um momento de silêncio e de indecisões… O Presidente da Câmara dirige-se para a sua cadeira e manda proceder à chamada dos eleitores… Nisto entra na sala o distribuidor com dois telegramas oficiais: um dirigido ao Presidente da Câmara, em que o Governador Civil lhe ordenava, sob pena de procedimento legal, que assumisse imediatamente a administração do concelho, e outro, dirigido ao Vice-presidente da Câmara, ordenando-lhe que presidisse à eleição da comissão de recenseamento eleitoral. Foram bombas que rebentaram na assembleia! Depreende-se o barulho… a confusão… Os progressistas, desnorteados, exigiam em altos berros, do comendador Marques que desobedecesse ao Governador Civil, mas o bondoso comendador, em voz sumida, declara que não desobedecerá à autoridade superior do distrito. Entretanto, o Vice-presidente da Câmara, Sr. José Francisco Mendes, assume a presidência da assembleia… E a chamada dos eleitores termina entre o maior alarido! É apresentado um requerimento para que se proceda a exame de sanidade num eleitor progressista, física e moralmente impossibilitado de exercer conscientemente o direito de votar… Os progressistas, cuja exaltação estava já em ponto de rebuçado, perdem de todo a cabeça; invectivam, insultam, ameaçam os regeneradores, que se conservam em absoluta ordem, serenos, disciplinados, unidos. À porta da assembleia, e entre os populares de um e outro partido, há violenta troca de socos. O amanuense da administração, João da Cunha e Frias, puxa de uma pistola para o regenerador Joaquim Alves Cerdeira… Notava-se também que, desde que respondera à chamada, o eleitor Francisco António Torres pretendia libertar-se do chefe progressista Manuel Henriques de Matos, que o tinha fortemente agarrado pelo casaco… Mas tanto o Torres estrebuchou que afinal se conseguiu desprender das mãos do Manuel Henriques, o qual, vendo finalmente perdida a eleição, receando talvez o estado tumultuoso da sala e, quiçá, esperançando que a eleição pudesse ficar adiada para o dia seguinte – sempre era uma esperança – vermelho, apopléctico, feroz, enfia escada abaixo, gritando que saíssem da sala todos os progressistas… E os progressistas vão saindo… ao passo que o presidente da assembleia ia lendo os nomes da comissão recenseadora, que a assembleia aprovou por 19 votos, contra 1, do Dr. Augusto César Cortez. Venceram, portanto, os regeneradores, a maioria e a minoria da comissão de recenseamento eleitoral, e, por acaso, votaram exactamente 20 eleitores – os precisos para a eleição se efectivar no dia próprio. Como de costume, as duas bandas filarmónicas, a chata e a cachimbana, sem detença apareceram a festejar com vitória e fogueteiro – uma a sua derrota! e outra a sua vitória… Muito bem até aqui… mas era forçoso contar-se com a reclamação dos progressistas para o juízo de direito, a que presidia o Dr. Esteves Leal e onde era delegado o Sr. Dr. Abel Franco, ferrenhos progressistas e tremendos inimigos dos regeneradores: fatalmente a eleição ia ser anulada… Para mais, adoecera-nos gravemente, falecendo dias depois, o 40º maior contribuinte e dedicado regenerador Luís Francisco Alves Neves… Tornava-se pois indispensável dispor as coisas no sentido de o juiz não poder julgar, visto o comendador Marques, na qualidade de administrador do concelho, ter efectivamente reclamado contra a eleição… Como aliás se previa, o delegado não demorou a requisitar da Câmara uma certidão da acta da eleição – sem a qual ele não podia promover e o juiz julgar; mas o processo da eleição havia sido enviado para o Governo Civil…, oficiando-se, neste sentido, ao delegado, afim de que para ali pedisse a certidão… O delegado assim fez, mas quando o seu ofício chegava a Coimbra, já o processo de eleição vinha novamente a caminho… para aqui ser arquivado… e nessa conformidade responderam do Governo Civil ao delegado, que logo para Goes mandou um oficial de diligências com mandatos de intimação, etc, etc. O diabo foi que o último dia do prazo de julgamento pelo juiz expirara…, vendo-se assim o célebre magistrado impossibilitado de anular a eleição, como tanto era do seu agrado, anulação que os progressistas tinham como a mais certa coisa deste mundo! Mas nem assim se dera por vencidos. Recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo, onde o processo foi distribuído ao conselheiro Hintze Ribeiro, que o relatou, sendo por unanimidade negado provimento ao recurso. »
O respectivo acórdão vem publicado na “Colecção de Legislação” de 1893, a fl.52.