Eram quatro irmãs. A mais velha, fidalga e senhoril, fora já uma “Honra Velha”. Era bem conhecida da Corte desde o início do Grande Reino, ocupando ali lugares de confiança. Baptizaram-na com um nome, dizem uns, de origem visigótica, pensam outros, remontando aos celtas que, cerca de mil anos atrás, teriam por ali andado. Certo, certo, é os romanos terem-na conhecido bastante bem, pois as suas entranhas foram por eles violentadas e delas retirado ouro e outras preciosidades.
A segunda bem diferente era. Viva, traquinas, sempre quis ser independente. Desce muito jovem, tinha foral e prerrogativas próprias. O seu juiz orgulhava-se de usar nas suas varas as armas reais, não as dos senhores locais. Quando mais tarde se reestruturaram os forais do Grande Reino, não se calou, aqui-del-rei que estava a ser prejudicada. Um dia haveria de mudar de nome – Várzea era lá nome que se pusesse a uma Senhora! E também Vila, pois então, o que ela tinha a menos, para que não o merecesse ser?
Mais tarde vieram mais duas. Gémeas, pacatas e austeras, de ar serrano. Nasceram siamesas e ligadas para sempre ficaram – ainda hoje, vejam lá, discutem pachorrentamente por onde se devem separar, se por aqui se por acolá. Durante uns tempos, estiveram a viver com um vizinho, Arganil, depois com um outro, Seia de seu nome, mas não tardou que viessem a aconchegar-se junto das manas mais velhas.
E as quatro – Goes, Várzea, Colmeal e Cadafaz – uniram-se de vez e formaram um pequeno reino, sob a protecção da mais velha. Por muito tempo têm vivido juntas, brincando nas tranquilas águas do Ceira, que as banha, curtindo as mágoas e gozando os prazeres da vida. Cimentaram entre si uma grande amizade.
Mais para sul morava uma vizinha que, desde moça, se governava por si própria. Era vila e gozava de privilégios dos reis e dos príncipes, com foral desde 1281, mais antigo ainda que o de Goes. Chegou a ter três paróquias, era vigararia, com juízes, poetas e artistas, obreiros e artífices. Tinha ouro para dar e vender e, contam os mais antigos, até boa água virtuosa contra o mal de opilação. O seu nome parecia vir da exuberante vegetação alvar, dos outeiros que a circundavam e lhe davam um ar majestoso. Dizem que era feliz. Mas veio a crise, foram-se os anéis e, a pouco e pouco, foi mirrando. Os maiorais da Corte acenaram-lhe com a sua integração no reino de Goes. Que era para seu bem, auguravam eles. Com os cofres vazios, pouco mugiu. Reuniu os trapos e juntou-se ao reino vizinho. As suas terras eram vastas, mas com poucos servos para as cultivar, e os celeiros pouco ou nada tinham. E assim foi refeito o reino de Goes, agora com cinco companheiras para o bem e para o mal. Corria então o ano de 1855.
Desde então, o reino nunca mais se recompôs. Aquela união tinha sido forçada, imposta pelos iluminados de então, não fora, nem por amor nem por empatia. Vinda do outro lado da serra, com hábitos de independência e já de cabelos brancos, Alvares recomeçaria uma vida nova, constrangida aos caprichos das novas companheiras. Melancólica e triste, a antiga e aristocrata Alvares foi aceitando o cinzento da vida de todos os dias. Para amenizar as suas dificuldades, foi piscando o olho para os reinos vizinhos, os das bandas do sul, estabelecendo com eles negócios e enviando alguns dos seus filhos para lá estudarem. Pão, mesa e roupa lavada não lhe tem faltado, que isso é obrigação do poder político, que certamente faz o melhor que pode e sabe. Mas Alvares deverá também ser tida como parceiro importante para o desenvolvimento do reino – com a valorização das suas riquezas naturais e construção de património cultural, o conhecimento da sua história, do seu passado colectivo, as etnologias e as etnografias das suas gentes.
Impõe-se alterar esta situação, certamente com o estabelecimento de medidas que exigirão coragem e imaginação. Medidas estruturais e não apenas conjunturais. Ainda recentemente, as cabeças pensantes do Plano Director Municipal, nas suas recomendações para um melhor desenvolvimento do reino, propunham um estatuto administrativo específico para o espaço de Alvares. Se tal se concretizasse, seria já uma pequena “revolução”, mas para a fazer é necessária determinação política e alterações de hábitos de gestão. Muito há a esperar dos alvarenses como agentes dinamizadores do desenvolvimento. Neste final de século e de milénio, que não é o fim do mundo como os pessimistas profetizam, tem que ser o renascer de uma nova esperança. E Alvares tem que renascer – como a Fénix, aquela ave, de vistosa plumagem, que emerge das suas cinzas com renovada juventude.
Cento e quarenta e quatro anos depois daquele ano histórico de 1855, este pequeno reino de Góis continua dividido em dois, social e culturalmente. O que deveria merecer uma profunda reflexão. Se Alvares precisa do reino, também o reino precisa de Alvares. JNR (de O Varzeeense, 1999, com correcção de texto)
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Cadafaz e Colmeal (...) Cadafaz e Colmeal têm percorrido juntos os caminhos longínquos da sua identidade. Segundo a valiosa obra e descrição de conceituados historiadores acerca da história do concelho de Góis, verificamos que, pelo menos nas Inquirições de D. Dinis já era referido Cadafaz e Colmeal como sendo povoadas no tempo de D. Sancho (1185-1211). No Foral não Régio de Gonçalo Vasques (7º Senhor de Góis 1314), menciona-se Colmeal com quatro casais e Cadafaz com oito, aos quais se atribuíam os deveres do foro, continuando mencionadas no Foral Régio do rei D. Manuel, no Cadastro do Reino na elevação a freguesias e no reconhecimento dos Padroados já com os respectivos oragos e restantes bens das paróquias, etc. Claro que com o decorrer dos séculos muita coisa mudou, no entanto parece ter havido sempre um elo de ligação entre as duas freguesias nos vários serviços, quer pessoais, religiosos ou comunitários. O serviço postal, ou seja, o transporte das malas do correio foi feito durante décadas (1916) pelos condutores de malas de Cadafaz entre Góis-Cadafaz-Colmeal e vice-versa diariamente e aqui recordarei José Simões Paulo, Guilherme Simões Paula e outros, que bem merecem o nosso eterno reconhecimento pela sua dedicação, missão tão exaustiva e tão mal renumerada. A ligação de telefone, também durante alguns anos era feita do P.C.T.F. de Cadafaz para Colmeal. O mesmo se passava em relação aos serviços religiosos, sendo as duas paróquias assistidas pelo mesmo pároco, quase diariamente tal era a assiduidade no cumprimento dos serviços da Igreja. Mas um dos grandes impactos de ligação, foi sem dúvida o regionalismo com a criação das colectividades, a interligação entre os seus fundadores quer do Colmeal ou Cadafaz defendiam as mesmas aspirações e ideias, melhorar a forma de vida das suas comunidades e aldeias onde nasceram. Foi de uma forma bastante gratificante que o empenho no desenvolvimento foi conseguido por Homens de grande valor e eficácia. É certo que eles foram partindo mas os seus “Marcos” ficaram e com eles o grande significado para quem os sabe reconhecer e honrar aliás, creio que a melhor forma de reconhecimento é a continuidade do seu trabalho. (...) A. Silva (de Jornal de Arganil, de 31 de Dezembro de 2009)