Reviver o passado com a desfolhada no Colmeal (…) Tocado a música, o milho chegou em sacos trazidos por homens e cestas trazidas à cabeça por mulheres. Felizmente que o seu rosto já não transparecia o suor e o cansaço dos que, antigamente, acarretavam o milho, cesta a trás de cesta sob o sol ainda escaldante de Setembro e Outubro, das encostas e ribeiras fundas onde crescia. Despejadas as espigas no chão, logo começaram a ser despidas do folho protector que as envolvia, deixando à vista o grão pujante de promessa. Ali ao lado, alguém dizia: - Na minha terra, cada um escapelava o seu milho, à medida que o ia colhendo. A ajuda dos vizinhos era só para as debulhas. E o que nós chamávamos de “desfolhada” era a tarefa de tirar a folha à planta, fazendo com ela molhinhos que se secavam e guardavam para alimentar o gado no Inverno. Às vezes, ia-se desfolhar nas noites de lua cheia! Como não podia deixar de ser, o “Chi” (espiga preta) lá apareceu, a lembrar que constituía pretexto para os abraços mais ou menos apertados e prolongados que, ao tempo, só ele consentia! No Colmeal, também o Vice-Presidente da Câmara Municipal, Dr. José Rodrigues e o Presidente da Junta de Freguesia, senhor Carlos de Jesus terão sido devidamente abraçados! Terminada a escapelada, (descamisada, desfolhada), os folhos foram recolhidos nos hoje omnipresentes e (in)dispensáveis sacos de plástico. Os folhos já não servem para fazer enxergas, mas farão certamente as delícias de alguma cabra de estimação que sobre por aí! Seguidamente, passou-se à debulha do milho, usando o mangual. - Na minha terra, malhava-se o milho com um pau grande … - Na minha, era com um aí de meio metro. Mas sei que também se usou o pau grande e até o mangual, há uns oitenta ou noventa anos. A opção pelo pau pequeno ter-se-á ficado a dever ao facto de o milho ser malhado em casa, onde a exiguidade do espaço dificultava o uso daqueles utensílios. As eiras (tendais) praticamente só serviam para secar o milho, nomeadamente por causa do declive dos terrenos. Mais tarde, enquanto as crianças continuavam a “escasular”, isto é, a retirar do casulo os grãos que a pancada certeira do mangual não tinha libertado, já os adultos cantavam e dançavam! Só faltou a ceia que os donos das debulhas ofereciam no final das mesmas, pelo menos em algumas localidades. As debulhas tinham lugar à noite para aproveitar da maior disponibilidade dos vizinhos para ajudar. Era muito engraçado e engenhoso! Nas noites em que havia várias debulhas, ou os membros das famílias se distribuíam por todas, ou era o tempo que era distribuído, andando as pessoas de debulha em debulha, candeia acesa na mão… Também se dava o caso do convite para a debulha ser recusado: “Ai, debulha(s) hoje? Olha que pena! Fica para a próxima, que hoje já me comprometi com fulano (a) …” Entreajuda era assim! A não ser que alguma zanga se lhe sobrepusesse, o que também podia acontecer! Mas, voltando à ceia, consistia em broa com figos, azeitonas ou queijo (um luxo!) e uns goles de vinho ou aguardente bebidos da garrafa que passava de mão em mão. (...) Lisete de Matos (2010)
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Em Cortecega
Cortecega, terra dourada, Foi onde nascemos E onde fizemos Grandes desfolhadas.
No meio das desfolhadas Havia muitas barbelas, A casa da tia Carriça Estava cheia de capelas.
Ao longe já se ouvia A juventude a cantar, Procurando a espiga vermelha Para os presentes poderem beijar.
Cada vez que se encontrava a espiga, Tocavam a concertina, Lá vinha o dono do milho Distribuir um copinho.
Domingos, dias santos e noites, O povo lá se reunia. Cantando às desgarradas, Passavam mais uma noite e um dia.
Cortecega, situada numa encosta, Terra do meu coração, Aos teus pés fica o rio Ceira, Na tua cabeça o Rabadão.
A serra do Rabadão Está cheia de belezas, Cortecega, aldeia Serrana, És das mais portuguesas.
Eugénia Santa Cruz (2007) * *
...e em Vila Nova do Ceira É velho costume em Vila Nova do Ceira, os trabalhos das escapeladas, ou escamisadas, serem executados por ajuda dos vizinhos quer dizer, que uns trabalham para os outros, aguardando cada qual a sua vez, para ser compensado com a mesma ajuda. Com carros de bois, são transportadas as espigas para as eiras e ajuntadas em monte, para à noite se efectuar a escapelada, umas vezes ao luar, outras, à luz duma lanterna. Circunda o monte das espigas um grupo airoso de raparigas e rapazes, misturando-se neles os garotos e os velhos, enfim, toda aquela gente que pretende ser também ajudada na primeira oportunidade. Entre as espigas, normalmente amarelas, sobressaem umas de cor encarnada, a que vulgarmente chamam “chis”. O achador dum “chi” fica logo creditado, ou antes debitado, conforme lhe é agradável ou desagradável, com a obrigação de dar um abraço em cada pessoa que esteja ao serviço, a começar pela direita, até á última da esquerda. Quando o “chi” é colhido por um garoto, claro está, que ninguém dá pelo facto, mas se é um velho ou velha, ocasiona incidentes pitorescos, quando a pessoa é chistosa, mas, no comum, os velhos, para se pouparem ao reboliço e não se meterem ao em bulhas, escondem o achado ou dão-no sonegadamente a quem seja jovem e que esteja ao seu lado. As espigas, conforme vão sendo escamisadas, são atiradas para dentro de umas cestas colocadas à frente dos escapeladores. A capa, ou seja a camisa que envolve as espigas, é atirada para as suas costas, formando atrás de cada operário um monte, que aumenta de momento a momento. Finda a escamisada, que tantas vezes leva alguns serões, é tradição organizar-se um baile á moda da terra, a que chamam “brincadeira”. A brincadeira começa e vai daí, junta-se muita gente. É o pessoal das outras escapeladas que ainda não estão findas. Vêm também de fora o rapaz que toca a guitarra ou o harmónio, quando este não tenha tomado parte até ali nos trabalhos da escamisada, enfim até de manhã é um céu aberto toda aquela noite. Na sua crescente fúria do rodopio da rapaziada, acaba o baile só quando o bom senso dos pais das raparigas arrancam as pequenas aos braços dos seus insaciáveis pares. (…)