Em Cortecega Como a maioria dos habitantes da aldeia, os meus pais eram muito pobres. Quase todos viviam de uma agricultura de subsistência e do pouco dinheiro que o meu pai trazia da carpintaria onde trabalhava. Os bens alimentares, como a batata, o tubérculo essencial nesse tempo à alimentação familiar, o milho, o feijão, a couve, entre outros, que eram semeados em terras nossas e de arrendamento. Na nossa velha e pobre casa, onde, em dias invernosos, era preciso aparar as goteiras de água com baldes pois o tecto tinha buracos. As grossas paredes exteriores eram em pedra, mas o interior, quase amplo, tinha umas paredes de contraplacado que separavam as três divisórias. Duas divisões pequenas em forma de quarto, um dos meus pais e do meu irmão mais novo e o outro meu e dos meus outros dois irmãos, pois a minha irmã mais velha já era casada. O chão era de madeira, percorrido por uns quantos buracos tapados com tábuas. O vestuário era o mais simples e quase sempre feito de roupa que era dada à minha mãe e ela aproveitava para fazer roupa para os filhos. Brinquedos comprados, nem pensar! Não havia dinheiro para tais luxos. Nós fazíamos os nossos brinquedos, eu fazia as bonecas de trapos velhos (eram as bonecas mais lindas que eu conhecia). Os carros e barcos dos meus irmãos eram feitos da casca do pinheiro (carrasca). Como é um material muito maleável era fácil de trabalhar. Um outro brinquedo que usava era a fisga. O elemento principal era recortado de um ramo de árvore em forma de Y e as extensões elásticas eram cortadas de uma câmara-de-ar de bicicleta. Este pequeno brinquedo era uma armadilha para, através de isco, apanhar aves, então lá iam os rapazes para as terras em redor tentar apanhar um pássaro. Quando entrei para a escola primária, em 1969, em Góis, que ficava a cerca de quatro quilómetros da minha aldeia, então com seis anos de idade, não ia sozinha pois a aldeia de Cortecega tinha muitos miúdos. Nessa época chegámos a andar 17 na escola primária, todos ao mesmo tempo. No ano em que nasci, nasceram mais cinco crianças nesta aldeia. Como todas as crianças do lugarejo onde vivia, íamos a pé, fizesse chuva ou sol escaldante. A roupa e calçado que usávamos por vezes não se adequavam ao tempo. Lembro-me de no inverno chegarmos à escola completamente encharcados. Nesta altura havia uma escola de raparigas e outra de rapazes. A alimentação era levada de casa, coisas cultivadas no campo, como a broa de milho, milho este cultivado por nós, os ovos, mas na maioria das vezes era uma sardinha na broa. Lembro-me de uma colega, a Lena, cujos pais eram caseiros numa vacaria e por vezes ela trocava a minha sardinha pelo queijo dela. Tínhamos de nos levantar muito cedo e palmilhar aqueles quatro quilómetros e à tarde, quando a escola terminava, regressávamos todos juntos. Nestes tempos não se bebia café todos os dias de manhã, pois era um bem só para quem podia, mas os nossos pais, sempre que chovia e chegávamos molhados a casa, faziam um café bem quente porque ajudava nos resfriados (constipações) e nós, como gostávamos tanto deste miminho, muitas vezes deitávamo-nos nas valetas cheias de água para chegarmos a casa molhados e termos direito à caneca de café quentinho. Uma das alturas mais bonitas do ano era o Natal. Na minha casa nunca faltou o presépio, íamos ao campo apanhar o musgo, a cabana era de bocados de pedras maiores revestida de palha de centeio, as casas era feitas com pedras pequenas, as ovelhas com um bocado de pau e lã que tirávamos das ovelhas, a igreja simbolizada por uma cruz feita com paus. No dia de Natal acordávamos cedo, pois apesar de pobres a minha mãe tinha sempre uma coisinha dentro das nossas botas de borracha, ou umas meias ou um bocadinho de palha. Esta palha era vendida ao quilo e era composta pelas aparas das bolachas de baunilha. A cada um calhava um bocadinho embrulhado num cartucho, feito de papel da lista telefónica. Íamos assistir à missa à vila, que, como já disse, fica a cerca de quatro quilómetros. O almoço deste dia era um bocadinho melhor: canja de galinha e arroz com galinha ou um bocado de carne de porco, arroz doce e filhós, sempre que possível, na companhia da família e amigos. (…) A aldeia de Cortecega foi sempre uma aldeia com tradições, costumes, usos, bailaricos e festas que se mantém até hoje. Existiu aqui um Rancho Folclórico só com habitantes desta terra. Chegámos a ser mais de 35 elementos, entre dançarinos, tocadores e organizadores. Éramos uma família. À semelhança de outras aldeias do interior, a nossa também nesta época não tinha luz eléctrica. As estradas eram em terra batida. O correio passava três vezes por semana e mais tarde começou a passar todos os dias. O carteiro percorria várias aldeias e sempre que chegava, agarrava na corneta e tocava três vezes para as pessoas saberem que tinha chegado. A água era de um chafariz existente no meio da aldeia e, quando o verão era muito quente, faltava a água e tínhamos de a ir buscar em cântaros e bilhas à cabeça, a mais ou menos um quilómetro de distância. Na aldeia, havia uma mercearia que se chamava Mercearia do “Tio Rafael”. Este não sabia ler nem escrever, anotava tudo com uns riscos num papel, mas não enganava ninguém nem se deixava enganar. Esta mercearia tinha de tudo um pouco, era servida todos os fins-de-semana pelos filhos, o Tio Zé e o Tio Mário, que tinham, e ainda tem, um supermercado em Coimbra. Chegou a ser umas das aldeias dos arredores com mais habitantes. Só pessoas entre os 10 e 19 anos éramos 17, fora os mais pequenos e os mais velhos. As casas que hoje se encontram vazias ou em ruínas estavam cheias de famílias com seis ou mais pessoas. Todos os fins-de-semana havia um bailarico, vinham pessoas doutras aldeias e principalmente jovens, pois nesta aldeia havia muitas raparigas. Era um dos entretimentos, onde se divertiam novos e mais velhos. Ao som do gira-discos, do rádio, do gravador, do harmónio, da concertina ou da flauta. Qualquer coisa servia para divertir este povo sempre muito reinadio e danado para a paródia. Como não havia luz eléctrica, estes bailaricos eram feitos á luz da candeia a petróleo ou à luz do luar. Os rapazes muito malandrecos, passavam pela pessoa que estava com a candeia à cabeça e assopravam para a apagar, aproveitando este momento para dar um beijinho ao seu par.
Eugénia de Santa Cruz 2009
Em Vila Nova do Ceira (…) Era uma sociedade que tinha as suas regras. No dia 25 de Março era dia das “merendas”, ou seja, a partir desse dia todos os trabalhadores rurais tinham direito à merenda e à sesta, que só terminava esse mesmo direito a sete de Setembro. Este era um grande direito pois os trabalhadores trabalhavam de sol a sol. As serventias de propriedades para propriedades tinham que estar livres até ao dia um de Maio para as sementeiras. As águas de horas de rega eram estabelecidas, conforme a área do terreno cultivado. Normalmente eram quatro horas de rega por cada dia de sementeira, que era mais ou menos a área de um campo de futebol. Havia um Juiz para gerir a água e chamar os proprietários ou rendeiros para virem regar. As “testadas” ou levadas que passassem pelos nossos terrenos tinham que ser limpas até ao dia um de Abril. Quem fizesse aguardente no alambique do outro, levasse milho ao moinho ou azeitonas ao lagar, tinha que pagar a “maquia”, que era mais ou menos 10%. As sementeiras do milho que eram feitas com juntas de bois podiam ser pagas em faixas de palha. O trabalho agrícola podia ser feito por “permuta”, ou seja, pago por trabalho, quem não tivesse terrenos para cultivar podia ser de terços como de meias de terços, duas partes da colheita para o dono da terra e uma parte para o “amanhador”. De meias era metade para cada um, o mesmo se passava com a apanha da azeitona ou com os animais que eram “dados” de meias. Os baldios, que eram grande parte das serras, serviam para os pastores dos animais e para abastecer de mato e lenha aqueles que não tinham terrenos de pinhal. Para resolver pequenos problemas havia um Juiz de Paz e também os barbeiros tinham uma espécie de avença com alguns fregueses, um alqueire de milho era o cabelo cortado todo o ano. (…) A matança do porco era um ritual que se repetia todos os anos. Na época do frio, logo pela manhã, o porco era trazido por três pessoas para cima de uma grande tábua ou de um carro de bois. Um segurava as patas da frente, outro as detrás e o matador, depois de se benzer e beber um copo de aguardente, pedia aos presentes para não terem pena do animal, porque senão este demorava mais tempo, e espetava a faca no pescoço do bicho. O sangue era aparado com um alguidar de barro, onde pouco tempo depois ficava sólido para ser cozido e comido pelo grupo. O porco era aberto e pendurado. As tripas eram entregues às mulheres que as iam lavar ao rio com sal e limão, para mais tarde fazerem as chouriças. Parte do porco era retalhado e distribuído pelos vizinhos, o resto ia para a salgadeira. A oferta da carne aos vizinhos, para além de ser um acto social, comprometia estes a fazerem o mesmo, quando matassem o porco deles. A oferta era sempre da mesma maneira: num prato de louça, tapado com uma folha de couve.
José Rodrigues (de Salpicos da minha Aldeia, 2005 )
Em Chã de Alvares A Chã foi outrora uma zona de abundante e frondoso pinhal, que esmaltava uma linda e salutar imagem na Natureza e na ecologia, pela sombra e pela cor verde-escuro da sua ramagem ondulando ao vento, e do revestimento denso que dava ao solo. Da sua existência resultava ainda, para além disso, considerável riqueza económica para os seus proprietários, dada a lenha a madeira e a resina que produziam. Era uma floresta imensa, que povoava toda a área circundante desta localidade, numa extensão dilatada que ia desde a Serra até ao rio Unhais, abrangendo os domínios declivosos dos ribeiros do Caniçal, Carrasqueira e da Lomba Torta. De salientar, ainda e sobretudo, a extracção da resina, em cuja actividade se ocupava muita mão-de-obra nessa época distante dos snos 20, quando a escassez do trabalho imperava aflitivamente por todo o lado e os menos afoitos encontravam nela (e aqui) o seu ganha-pão, enquanto outros, mais aventureiros, o procuravam em Lisboa, Espanha, Borda d’Água, etc. A campanha da resinagem começava na Primavera, mas era o calor que fazia verter a gema com maior intensidade e obrigava a uma azáfama mais activa e constante. O trabalho era custoso e muito sujo, descendo-se e subindo encostas empinadas para a renova e colha da resina, que se tinha de carregar ao ombro até aos barris, colocados no dorso das lombas onde o carro de bois os pudessem carregar. Contudo a vida era linda, sadia e tinha o seu encanto ante a beleza dos contornos físicos e orológicos do solo, do sol resplandecente e das verduras das hortas que tão graciosas se apresentavam nos vales profundos onde a água permitia a sua plantação e pessoas havia para deles tratara e cuidar com esmero. Essas pessoas das horta e os resineiros com que se cruzavam, davam àquelas paragens vida e alegria que o aroma do alecrim e a presença das aves suavemente ambientavam com a sonoridade maviosa dos seus grojeios. (Quem se lembra ainda do gaio, do melro, do rouxinol, da cotovia?...) (…)
Aristides Lopes (de O Varzeense, Junho de 1996)
Por terras do Colmeal Eram muitas horas para uns braços tão ternos! (…) Recordo-me da minha mãe querer ir para Lisboa para a família estar toda. Mas o meu pai, agarrado à terra, por amor à terra, a pensar que quando se reformasse voltava, não a deixou ir. A mina mãe sacrificou-se e, depois, acabou por se ir embora. (…) Ainda há pouco, o meu pai estava a falar que eu quis trabalhar para a floresta quando tinha onze anos. É natural, via o meu irmão ir e também queria ganhar dinheiro. Se calhar isso deixou marcas, não é? Mas ele fala disso com muita satisfação, enquanto eu recordo com mágoa. (…) Acho que não era trabalho para aquela idade. Fui semear pinhal para a assentada da Panasqueira. Lembro-me de dar com a enxada ou o sachão nas carquejas e daquilo não ir nem por nada. A gente tinha onze anos. A seguir, começaram a construir a estrada que vinha do Cabeço do Gato e era para ir para o Colmeal. Chegou lá o Guarda do Camelo e mandou-me, a mim e ao meu irmão, para a construção da estrada. Aquilo era uma montanha de cascalho, e o nosso trabalho era transportar o cascalho nos carros de mão. Aí é que era mesmo duro. A vida foi mesmo ingrata. Com a nossa idade, todo o dia a encher e a transportar cascalho. No Inverno, trabalhava-se oito horas, mas, no Verão, aumentava o horário de trabalho e o máximo eram 10 horas. Realmente eram muitas horas, mais a mais, para uns braços tão ternos e com as mãos cheias de bolhas. Ficava pisado de todo. Depois, chegava a casa e a minha mãe, que nem se apercebia do estado em que eu vinha, ainda me mandava fazer outros trabalhos. Tinha a missão de regar o Açude. Para chegar lá mais depressa, descia da serra pelo meio do mato, a correr e a abraçar-me aos pinheiros para não cair. (…) Na floresta ganhávamos, com 13 e 14 anos, 22$00 que era o ordenado de um homem, mas também o merecíamos. Depois passámos a fazer a recolha da resina, a ganhar 25$00, mas como não havia trabalho todos os dias, continuávamos a ir para a floresta nos outros. (…) (Excerto de entrevista. O protagonista refere-se ao final dos anos cinquenta/inícios dos sessenta.)
Era andar ali com a picareta (…) Comecei logo ali a trabalhar no duro, a dar dias. A seguir fui para a construção da estrada da Sandinha. Tinha aí os meus 14 anos. Andava com um carro de mão a acarretar cascalho. Depois, fui para as minas debaixo do chão, a 150 metros. E eu tinha 16 anos e, por isso, não podia andar nas minas. Mas havia aqui um senhor muito bom (…) e eu pedi-lhe. Ele falou com o encarregado e eu lá fui. Era uma responsabilidade, mas na estrada ganhava 9$50 e lá ganhava 12$50 ao dia. Está a ver, eram mais 3$00 e eu, tumba, lá para baixo! Íamos a pé daqui para a Sandinha. No tempo do Inverno, fazia-se o caminho sempre de noite, de manhã e à noite. Tínhamos um gasómetro a carbureto e a gente enfiava-o aqui (aponta para o ombro) para nos alumiarmos por esses carreiritos abaixo. Lembro-me de levar a saquita do farnel às costas, um garrucito na cabeça, o gasómetro pendurado no ombro e, com as mãozitas nos bolsos, tuc…tuc…tuc… Era uma hora e meia a pé para cada lado. E se fôssemos para um escritório! Mas era andar ali com uma picareta e tudo o mais. Agora há máquinas, mas antes era tudo manual. A nossa família, os nossos pais e as raparigas… as raparigas só as víamos aos Domingos. Era de oito em oiro dias. Ainda sou do tempo de se ganhar 5$00, por dia. Quando foi do ciclone, aí em 1940, acartei às costas muitos toros de madeira para queimar e ganhava 2$50, meio dia, e 5$00, o dia. A vida aqui era muito ingrata e ainda havia quem passasse pior. Quando tinha aí 17 anos, fui para Lisboa. (…) (Enxerto de entrevista. O protagonista refere-se ao início dos anos quarenta.)
Ficavam muito bonitos (…) Iam-se buscar paus de ervideiro ou medronheiro – tem os dois nomes – depois serravam-se, eram chanfrados, depois cozidos. -Chanfrados? -Sim era cortar com uma machada em cimo de um cepo. Ficava meio fuso feito. Depois de cozidos numa panela, eram secos no caniço para não racharem. Depois de bem secos, tornavam-se a pôr na água para amolecer e depois serem apontados. Depois de apontados, ainda iam para o torno, e no torno é que ficavam uns fusos bonitos para vender. Ficavam muito bonitos. Ainda temos os tornos e o meu irmão (nome) quer um, porque ainda os ajudou a fazer. No torno é que eles ficavam torneados e depois iam vendê-los às feiras. Por isso é que os meus pais criaram tantos filhos. De dia, os meus pais trabalhavam no campo e, à noite, a minha mãe trabalhava na costura, e o meu pai, nos fusos. Quer dizer, todos trabalhavam porque os filhos também ajudavam Os meus pais ensinaram os filhos todos a trabalhar. Tínhamos muitos animais e dava tudo fartura. (…) Éramos muitos, mas nunca tivemos fome. Com muito trabalho e bem orientados, nunca tivemos fome. (…)
(Excerto de entrevista. A protagonista refere-se às décadas cinquenta/sessenta.)
Lá e cá, cá e lá (…) Naquele tempo, não vinha (à terra) sequer uma vez por ano, porque ganhava-se muito pouco. Logo de entrada, estive uns dois anos sem cá vir. Depois, vim cá. Quando foi da inspecção, requeri para lá a inspecção, porque eu não tinha dinheiro para a passagem. Muita gente só apregoa a fartura que passaram. A fome e a miséria que passaram não dizem, mas eu digo que foi verdade. A situação era mesmo assim, e o que passou por mim passou por muitos. Não tinha dinheiro para a passagem, não vim. Disse: “O que é que eu vou lá fazer? Figuras tristes, não vale a pena. Ir para lá com o mesmo fato que trouxe, pior!” (…) Noutros tempos, não tínhamos uma estrada, não tínhamos nada. Nós para irmos para Lisboa, íamos a pé, daqui para o Rolão, para Góis, para Arganil, ou para Celaviza, para a Sarnoa, onde está a Senhora da Boa Viagem. Ainda lá cheguei a ir levar o cabaz dos que iam para Lisboa. (…)
Eu sinto que vivia em Lisboa, mas vivia cá. Quando vinha cá vinha de comboio. A gente saia de lá por volta das oito da noite e só chegávamos aqui no dia seguinte às dezoito. Eram quase vinte e quatro horas de viagem, era uma coisa extraordinária! Saiamos em Coimbra, na estação velha, depois apanhávamos o comboio para Serpins e, na Lousã, apanhávamos uma camioneta para a serra. Da serra para baixo vínhamos a pé. Tudo isto com esperas e com farnéis, garrafões de vinho, petiscos. Na estação, onde agora são as bilheteiras, quantas vezes a gente dormia ali encostada à parede, à espera do comboio. (…) Enxertos de entrevistas. Os protagonistas referem-se às décadas de quarenta e cinquenta, mas o isolamento persistia até bastante mais tarde.
Lisete de Matos (de Dos Objectos para as Pessoas, 2007)
As idas a Arganil Vendendo molhos de couve, esta senhora [na gravura] reproduz a mais de meio século de distância, a prática das gentes da serra de irem vender pequenas quantidades de produtos a Arganil, poupando-os à boca para poderem comprar os que não produziam. Caminhando horas pela serra para lá e para cá, as mulher com a cesta à cabeça, os homens como podiam, iam vender sacos de carvão, molhos de palha, uma dúzia de ovos, uma galinha, dois litros de feijão, molhos de grelos no tempo deles e pouco mais. Quando não conseguiam vender tudo no mercado, onde pagavam taxa, iam oferecer o resto a lojas, vendendo mais barato. É mais ou menos o que a senhora está a fazer no café Argus. Nos anos quarenta, a “faxa” de palha verde da cana vendia-se em Arganil por 6$00, enquanto ao domicílio se vendia por 3$00. Segundo um amigo, do Colmeal, valia a pena o esforço que considerava o maior que teve que fazer. Quanto aos grelos, já na década de cinquenta, vendia-se o molho por 1$50, 2$00 ou 2$50, dependendo da abundância. Com o dinheiro ganho, comprava-se sardinha, mercearia, um pão que sabia a bolo, algum pano e os utensílios absolutamente necessários. Também se iam comprar cestas de maças às Secarias e hoje tantas por aí a estragarem-se! Comiam-se com broa. Num registo que já não será o da subsistência a todo o custo, continua a ver-se, nos mercados municipais, pequenos produtores a venderem pequenas quantidades de géneros.
Lisete de Matos (de Os Objectos para as Pessoas, Açor, Colmeal, Junho de 2007, p. 31)