Apaixonado pela arqueologia da nossa região, o Doutor João de Castro Nunes investigou e estudou alguns materiais arqueológicos que, em meados do século passado, foram por si “descobertos”. E, ao relacionar os petróglifos, por si denominados de “Pedra Letreira” e “Pedra Riscada”, com aras encontradas nas suas cercanias, salientou a hipótese de o espaço ao redor do Penedo se tratar de um santuário de crenças primitivas, talvez de culto a uma divindade local, de nome Ilurbeda. De monografias que então publicou, retiramos as seguintes passagens: «Qual balcão desafrontado e sobranceiro às vertentes escalvadas e às barrocas fundas dos contrafortes da Lousã, é medonho e ao mesmo tempo aliciante o cenário que da Pedra Letreira se desfruta. Visto de ali, um pôr de sol a dessangrar-se por entre os dentes eriçados da crista silúrica da Serra do Penedo é simplesmente inolvidável… (…) No panorama circundante, não constitui a Pedra Letreira um documento que digamos único da presença do homem por aquelas paragens em tempos mais ou menos recuados. Em frente, na linha do poente, lá estão as minas romanas da Escádia, em cujos nichos dos hastiais, abertos a 1,20 m se encontravam, quando há anos se procedeu ao desentulhamento das respectivas galerias, algumas lucernas (…). Mais adiante, na mesma direcção, mas já dobrada a encosta, há o lugar dos Povorais, com as suas minas antigas de que procedem dois picões de ferro, de época romana (…) Cara ao norte, no Alto das Cabeçadas, temos os poços romanos, de exploração mineira, conhecidos pelas Covas dos Ladrões, de um dos quais saíram, não há muito, duas pequenas aras consagradas à divindade indígena “Ilurbeda” (…) E mais para além, vencida a serra da Folgosa e ultrapassado o Rabadão, não podemos deixar de referir as minas pré-históricas da Eira dos Mouros, na Encosta da Devouga, ao Liboreiro, com materiais de feição eneolítica e demais períodos do Bronze. Estes e outros vestígios do passado, ainda mal conhecidos, são indícios para já suficientemente reveladores de uma longa e activa permanência humana por aquelas redondezas, motivada ao que parece pela sua relativa abundância de minérios, o ouro e o estanho sobretudos. São como anéis desarticulados e dispersos de imaginária cadeia forjada, na bigorna dos séculos, por gerações atrás de gerações. Pobres restos materiais, aparentemente sem valor, que encerram no entanto a alma e a mentalidade dos povos que ali se sucederam e os deixaram, é através deles que teremos de refazer e articular de novo os elos da cadeia, se quisermos vir a ter um pálido vislumbre da sua trajectória pela penumbra dos milénios. (…) A magia, que brota da “Pedra Letreira” volta aqui [na “Pedra Riscada”], a dominar-nos, avassaladora e irresistível. Parece obra de encantamento. Apalpa-se a presença do sobrenatural. Há longes de infinito na cumeada das montanhas. Foge-nos a alma para o céu. O poder divino manifesta-se. Lugares malditos, chama-lhes o povo. Evita os seus silêncios. Aterra-o a solidão do ermo. Cria o mito das mouras encantadas. É que, por instinto, ele tem a percepção de ali estarem as relíquias de deuses ancestrais, de cultos esquecidos e quem sabe se a cinza dos seus mortos. Tem o respeito instintivo do sobrenatural, o respeito do sagrado, que tem fronteiras com o medo. Quando os romanos, na pista do ouro, vieram dar a estas serras, devem ter sofrido a efeito do mesmo sortilégio. O espectáculo grandioso da paisagem, dinamizado pela crista da Serra do Penedo, qual dorso de gigantesco dinossauro a esventrar o céu, cujo céu, ao mesmo tempo aliciante e alucinante, havia de moralmente os predispor para a aceitação do poderoso Génio local, a cuja vontade deveriam obedecer as forças ocultas da própria natureza física. Senhor dos montes e das fontes, das trevas e da luz, das nuvens e dos ventos, da superfície exterior e das entranhas, da vegetação e dos rochedos, eram seus também o ouro e o estanho dos filões. (…) Há hispanos que, fascinados pelo fulgor da civilização romana, passam a sacrificar nas suas aras, como se renegassem dos seus deuses. Outros há que, mesmo revestidos dos atributos da nova cidadania, continuam presos aos novos cultos e, alatinando o nome dos seus ídolos, o mandam gravar na legenda piedosa dos ex-votos, guardando intactas no coração as suas crenças ancestrais (…) Vem isto a propósito de, há tempos, terem sido achadas em trabalhos de desobstrução de antigos poços de exploração mineira, no alto das Cabeçadas, às Covas dos Ladrões, duas pequenas aras, do tempo dos romanos, dedicadas a uma divindade indígena: “Iburbeda”. (…) Tem “ressonância ibérica” o nome Ilurbeda. Abona-se o mesmo radical em topónimos e hierónimos das terras levantinas, a clássica Ibéria. São fósseis venerandos de tempos idos, de velhos idiomas, ainda não cruzados de indo-europeísmo, falas porventura tão remotas como as gravuras dos petróglidos, atribuíveis na generalidade ao decurso de tempo que nos fins do Neolítico se estende aos fins do Bronze, como as antas do caminho. É nome de cariz hispano-mediterânico. Ainda o seu radical nos signos silábicos das inscrições ibero-tartéssicas, legíveis mas não decifráveis. Com o Bronze Atlântico e, mais tarde, com o Ferro, vieram os povos da Europa Central e da Itália e, aqui, no reduto das montanhas, vestido à latina, o nome resistiu… (…) No cenário majestoso que tem por centro de gravitação a altaneira Serra do Penedo havia, pois, um culto antiquíssimo. A “Pedra Letreira” dos Amieiros e a “Pedra Riscada” da Mestras são, juntamente com as aras romanas das Covas dos Ladrões, nas Cabeçadas, documentos abonatórios da sua vitalidade através de muitos séculos. Que os dedicantes destas aras fossem romanos de gema, o que não é provável, a avaliar pelo onomástico e respectiva ortografia, ou naturais romanizados, isto é, hispano-romanos, vem a dar o mesmo. O que importa é que elas atestam, já no Outono do Império, a longa perduração desse culto e o nome da respectiva divindade. Não conhecemos, em ponto algum do território hispânico, qualquer outro testemunho de tal hierónimo. Tratar-se-á de um culto exclusivamente local? Relíquia filológica do património cultural das populações de fala ibérica, ou anterior a elas, o certo é que, se outros centros houve do culto a esta divindade no resto da Península, carecemos das respectivas provas. Não se conhecem mais vestígios. Só este subsiste. O que não sabemos, nem saberemos nunca pela certa, é o que nas garatujas ideográficas da “Pedra Riscada” e monumentos congéneres, qual ensaio incipiente de incipiente escrita, quiseram os pretensos devotos de Ilurbeda expressar para além de uma instintiva atitude de sujeição ao seu poder sobrenatural. Calemo-nos pois. Não profanemos com palavras vãs a paz do ermo que envolve o santuário. Todo o mistério tem o seu encanto, a sua poesia, que é uma das formas da verdade…»
Sobre esta divindade, o Doutor João de Castro Nunes deu-nos pessoalmente a seguinte informação complementar, que, com a sua autorização, damos a conhecer publicamente: «…vou directo ao assunto da sua prezada carta respeitante ao nome da divindade atestada pelas duas aras do concelho de Góis, a tal Ilurbeda que anda nas bocas do mundo, como se constata pela abundante informação electrónica. Vou procurar não me alongar demasiado. Após a publicação, por mim e pelo Eng. Dr. Veiga Ferreira, das ditas aras, ambas procedentes de um poço das Covas dos Ladrões, nas Cabeçadas, ainda não totalmente explorado, o respectivo teónimo foi integrado na dissertação de licenciatura do Doutor José d’ Encarnação sob o título de “Divindades indígenas sob o domínio romano em Portugal (Subsídios para o seu estudo)”, limitando-se o autor a confirmar as nossas considerações, tanto de ordem linguística como arqueológica. A obra, publicada em 1975 pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, encontra-se absolutamente esgotada. Com os empréstimos, fiquei também sem o meu exemplar. Entretanto era divulgado pelo “Archivo Español de Arqueologia”, em 1971, o aparecimento de uma nova ara dedicada à mesma divindade em Segoyuela, Salamanca, sem que chegasse ao conhecimento do Dr. Encarnação que obviamente a não refere na entrada dedicada, no seu repertório, à divindade em questão. Posteriormente, no III Colóquio sobre as Línguas e Culturas Paleohispânicas por mim organizado em 1980 na Universidade de Lisboa sob os auspícios da Universidade de Salamanca, que publicou as respectivas Actas em 1985, o Prof. Jurgen Untermann, da Universidade de Colónia, apresentou uma extensa comunicação intitulada “Los teónimos de la región lusitano-gallega como fuente de las lenguas indígenas” em que se ocupa do nome de Ilurbeda e afins, ou seja, de radical idêntico, que de modo algum mereceu a minha concordância. O ilustre linguista, um dos mais reputados indo-europeístas europeus, chegou a pôr em dúvida a leitura Ilurbeda, desdobrando-a em I (unoni) ou I (ovi) Lurbedae, ao sabor das suas conveniências… Um autêntico disparate. De qualquer forma, relacionando-a com a divindade Ilurberrixo, atestada na Aquitânia, equaciona o problema de uma hipotética, mas improvável, relação desta com as de Góis e Salamanca. A distância é um empecilho. Agora aparece uma nova referência na região de Burgos, alargando consideravelmente a zona de expansão do culto à nossa divindade. Pela fotografia que me foi dado ver, não distingo se se trata de uma ara ou simples lápide, o que para o caso carece de importância. O principal problema que este teónimo suscita é de natureza linguística, o que para já é absolutamente insolúvel. Em linguística histórica não se pode ir às apalpadelas, atrás de conjecturas em parecenças que podem ser meramente ilusórias. Trata-se de uma ciência de grande rigorismo e que exige uma preparação muito especializada. Em dada altura, facilitando, cheguei a considerar estarmos em presença de uma divindade do mundo especificamente ibérico, no sentido tradicional do termo. Hoje não defenderia de ânimo leve tal congeminação. Conhecendo hoje, como conheço, o panorama étnico e linguístico do território hispânico, uma autêntica manta de retalhos, de povos, línguas e culturas, não me atrevo a propor qualquer identificação terminológica. Ibérico? Céltico? Celtibérico? Vetónico? Foi por isso que, no referido III Colóquio, propus para os povos, línguas e culturas anteriores à romanização o termo “paleohispânico”, que teve larga aceitação e hoje goza de preferência nas investigações e publicações em curso. Perante a indefinição reinante, é o que a prudência recomenda. Até novas clarificações. Nestas condições, o teónimo Ilurbeda, que tão bem soa, pertence ao panteão das divindades que, antes da romanização, foram objecto do culto de povos indígenas de imprecisa identificação e que, já sob a dominação romana, continuaram em muitos casos, como aconteceu no concelho de Góis, a merecer a atenção das populações locais e até, por sincretismo, dos próprios agentes da romanização. Mais do que isto não se pode dizer, sob o risco de navegarmos num mar de fantasias. Deixemos isso para os poetas! No correio de amanhã vou-lhe mandar uma fotocópia do artigo do Prof. Untermann, que presentemente está a preparar a actualização do vol. II do “Corpus Inscriptionum Latinarum”, referente ao território hispânico sob os auspícios da Academia das Ciências de Berlim, o que só por si é claro apanágio do seu prestígio científico. Foi o arguente da tese de doutoramento de um antigo aluno meu da Universidade de Lisboa, onde agora exerce a docência com altíssimo nível nos domínios conjuntos da Arqueologia e da Paleolinguística. Revejo-me nele!»
João de Castro Nunes teve também a amabilidade de compor a seguinte poesia, especialmente para esta notícia:
Ilurbeda “Il est des lieux où souffle l’esprit” Maurice Barrès
Andam deuses pagãos pelas vertentes voltadas para a crista do Penedo em cujo panorâmico fraguedo há do seu génio provas evidentes.
A par do nome hispânico-latino inscrito em duas árulas romanas muitas gravuras há pré-lusitanas sopradas pelo espírito divino.
Difícil é saber interpretar o que as populações nos transmitiram nos riscos que deixaram lá ficar.
Sem pretender qualquer decifração, limito-me a dizer que elas sentiram andarem deuses… por aquele chão!