Chã de Alvares Ainda se apanha azeitona de forma tradicional! Desde a infância que não apanhava azeitona. Logicamente, nessa altura ainda criança, brincava mais do que apanhava, pois limitava-me a acompanhar os meus familiares nessa tarefa e por vezes lá apanhava uma ou outra do chão, ou de algum ramo que se cortava, e tudo num ambiente de brincadeira. Desta vez fui mesmo apanhar azeitona a sério, aproveitando uns dias de férias que ainda tinha para gozar. Ao iniciar esta tarefa verifiquei que os métodos utilizados ainda são os tradicionais, ou sejam, totalmente manuais, excepto um ou outro caso, onde já se emprega alguma mecanização. No entanto, há alguns pormenores que mudaram, fruto não só da evolução tecnológica, mas também de um maior conhecimento e hábitos da vida moderna. Dou-vos alguns exemplos: Já não se usam escadas de madeira, as de alumínio tomaram-lhes o lugar, são mais seguras, são extensíveis; os panais para onde a azeitona cai, hoje em dia são feitos propositadamente para o efeito, cobrindo todo o terreno correspondente à área abrangida pela copa da oliveira e são também muito leves, não se comparando com os retalhos de serapilheira ou encerados que se utilizavam antigamente; as oliveiras foram aparadas e são muito mais pequenas, já praticamente não existindo oliveiras do tamanho de castanheiros ou carvalhos; outro equipamento indispensável nos dias de hoje - coisa que não se utilizava há quarenta anos - são as luvas, o que evita que as mãos fiquem sujas, negras, gretadas e, até por vezes com feridas que demoravam semanas ou meses a desaparecer e a tratar. Também já não se utilizam as tulhas para armazenar a azeitona, nem o sal para a conservar. Tudo isso foi banido, e ainda bem, para beneficio da nossa saúde, sendo a azeitona agora armazenada e transportada em sacos de plástico devidamente certificados para ó efeito. No entanto há coisas que não mudam, porque não é possível mudar. Por exemplo, o gosto de sentir o sol reconfortante - quando o há - aquecer-nos o rosto quando estamos no cimo de uma oliveira, ou então, sentir a brisa, por vezes refrescante e suave, outras gélida e penetrante, ou ainda nos dias mais invernosos, sentir a humidade do nevoeiro e as folhas molhadas, encharcarem-nos o corpo. O que também não mudou e ainda é possível sentir é o cheiro agradável da rama das oliveiras a arder em pequenas fogueiras que se vão ateando para nos aquecermos e também queimar os ramos cortados. Outra coisa inalterada é a expectativa de no final do dia, após termos escolhido a azeitona, ou seja, separar o fruto das folhas, ficarmos a saber a quantidade que foi apanhada. Bem como depois, no lagar – nos tempos que correm devidamente modernizados, por imperativos higiénico-sanitários e ambientais – sentir a ansiedade e o nervosismo de se saber se fundiu bem ou não. Ou seja, se a relação quantidade de azeitona colhida, quantidade de azeite produzido foi boa, má ou mediana. Sendo certo que esta forma de apanhar azeitona e produzir azeite não é economicamente rentável, se contabilizarmos os custos da mão-de-obra na apanha, na limpeza das oliveiras e dos terrenos onde os olivais estão localizados, mais o transporte da azeitona para o lagar e os custos da laboração do mesmo. Também é certo que tivemos a satisfação de além de termos estado em contacto com a natureza – embora realizando um trabalho duro – mantivemos ainda o nosso património pessoal, familiar, cultural e até natural e paisagístico, preservado. E além disso, tivemos a possibilidade de produzir e obter um produto de óptima qualidade, 100% natural e na maioria dos casos completamente biológico, além de ter sido colhido de forma manual e tradicional. Ao mencionar a preservação do património natural e da paisagem, é porque na realidade um olival tradicional bem cuidado e preservado é efectivamente de uma beleza incrível, além de contribuir de forma decisiva para a manutenção do ecossistema da área onde está implantado. No entanto, como isso acarreta custos elevados para os seus proprietários, seria de todo pertinente que as entidades competentes, nomeadamente as ligadas à agricultura, ao ambiente e às finanças, incentivassem e estimulassem, a preservação e manutenção dos olivais tradicionais, custeando-as ou subsidiando-as. Pois se isso não acontecer, qualquer dia por muita boa vontade que haja em cuidar deles, as forças e a carolice dos seus proprietários acabam e depois deixa de haver ecos sistemas e paisagens bonitas e bem conservadas para oferecer e observar, restando somente mato e silvas. E este problema não se esgota nos olivais, mas também em outras actividades agrícolas, nomeadamente em regiões desfavoráveis como a nossa e que sendo feitas de forma tradicional e com pouca ou nenhuma rentabilidade, ainda assim preservam o ecossistema local, o ambiente em geral e a paisagem que todos apreciamos. Não sendo um pedido à subsidiariedade da não produção, muito pelo contrário, julgo ser um tema com interesse para se reflectir, e com alguma urgência, antes que seja demasiado tarde e os olivais tradicionais que ainda restam desapareçam completamente. José Simões Anjos
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Para a reinvenção da fabricação do azeite Referi-me em tempos à fabricação do azeite na serra [1], salientando os aspectos que fazem dela um exercício físico extremamente salutar e, ao mesmo tempo, uma manifestação da cultura de esforço e poupança que caracterizava as populações que viviam da agricultura de subsistência. Passados cinco anos, com os mesmos objectivos de valorização, visibilidade e registo, volto ao assunto para dizer que as práticas que então descrevia, se mantêm actuais, mas que são de assinalar diferenças significativas.
1. Um apego redobrado Em terras como Ádela e Açor, na freguesia do Colmeal, a azeitona continua a ser apanhada. É pouca, apesar de as oliveiras ocuparem hoje os terrenos bravios de sempre e os de cultivo, que há muito deixaram de dar milho. Mas poucos são também os que desprezam a dádiva singela da natureza, que o trabalho do homem transforma em ouro líquido requintado! Retomando a reflexão que fazia há anos, persiste o mistério do apego, aparentemente redobrado, destas populações à fabricação do azeite, quando o produto abunda no mercado numa relação qualidade-preço aceitável. Terão razão os que atribuem esse apego à progressiva degradação das condições económicas das famílias? Os que avançam fundamentos de ordem cultural e simbólica, que enraízam nas lendas e mitos da antiguidade longínqua e na tradição bíblica mais recente, onde o azeite simboliza a presença de Deus? Devido à escassez e ao envelhecimento da população, a azeitona é apanhada essencialmente pelos mais idosos e aposentados. Mas também por activos empregados, com residência permanente ou ocasional, continuando a tarefa a suscitar estratégias familiares muito curiosas. Para o efeito, uns guardam dias de férias, outros conseguem folgas expeditas, outros, ainda, comparecem nos fins-de-semana e feriados, deslocando-se de Lisboa, indiferentes ao agravamento dos custos de produção que as viagens representam. Importa, isso sim, participar no projecto comum de ter azeite “de seu”, as famílias de repente, e transitoriamente, de novo transformadas em unidades de produção. Unidades que até reproduzem os conflitos próprios das diferenças geracionais, os mais velhos querendo as coisas feitas à sua maneira, os mais novos ignorando a experiência e fazendo à sua!
2. Entreajuda e versatilidade Mas todos a quererem proteger os outros, reservando para si as tarefas mais difíceis. - Esse poiso é muito alto, eu arrumo lá escada! - Deixa lá ficar a azeitona, que os pássaros também precisam. - Deixo agora! Umas azeitoninhas tão lindas …! - Vamos embora, que está a nevar! Com as mãos engatinhadas ainda pode cair … - Eu levo esse saco, que está muito pesado... E, sozinhos, o avô nonagenário e os netos erguiam do chão sacos bojudos de azeitona, que os homens levavam sobre os ombros, como deve ser (!), e a mulher, estendidos pelas costas abaixo, num abraço tímido que ameaçava desfazer-se pelo caminho. Uma admiração! Sai, vai descansar que eu escolho … - Não, vai tu … E sempre assim! Um desassossego e um espanto: o trabalho em si próprio, o espírito de entreajuda e a versatilidade dos protagonistas, que tanto apanham azeitona como exercem ou exerceram profissões de grande exigência e responsabilidade. Em sintonia com a observação do sociólogo António Firmino da Costa, quando destacava a naturalidade com que as populações migrantes serranas desempenham coerentemente distintos papéis urbanos e rurais. [2] Tempos Cruzados, diria Augusto Santos Silva, um outro sociólogo agora político [3]. Será que a dupla identidade persiste, e que as novas gerações vão continuar a fazer azeite, quando a iniciativa depender delas, envolvendo cuidar as árvores? - Oiço apupar. Alguém precisa de ajuda … - Não, é do lado dos Cepos. Devem andar à azeitona em sítios diferentes, e é para saberem uns dos outros … - E a água sempre a cantarolar no barroco … - É, parece uma sinfonia! Já podia descansar e nós também!
3. Continuidade e mudança Comparativamente com 2004, a apanha da azeitona como que se profissionalizou, dentro dos limites impostos pela inclinação do solo, o porte gigantesco da maior parte das oliveiras e o seu reduzido número. A acompanhar a progressiva falta de agilidade dos apanhadores, as antigas escadas em madeira, autênticas obras-primas do artesanato local, praticamente foram substituídas por escadas em alumínio. Estas apresentam a vantagem de serem mais leves, e de terem os bansos (degraus) mais juntos, o que as torna mais fáceis de trepar por gente de perna curta! Também magoam menos os pés, por terem os referidos bansos mais espessos. Até a dificuldade de as espetar no chão, para maior segurança, foi resolvida, acrescentando-lhes uns pés bicudos, primeiro mandados fazer em Folques, depois comprados no mercado, onde passaram a estar disponíveis. Também os ganchos, que servem para puxar as pernadas distantes, já são metálicos, depois de idealizado um modelo que o ferreiro executou. Ainda se apanha azeitona para o cesto, colhendo a fruta miudinha com a mão, que vai e vem entre a rama da árvore e o recipiente, mas o respigar tornou-se frequente, utilizando os dedos ou gadanhos. Estes podem ser em metal ou plástico, mas os primeiros são preferíveis, por serem menos invasivos, contrariamente ao que se possa pensar. Quem experimenta respigar já não quer outra coisa, uma vez que o procedimento torna o trabalho muito mais rápido. Claro, desde que se tenha o cuidado de fazer bem a cama onde a azeitona vai cair, o que não é fácil, devido à inclinação do terreno e ao vento que sopra, por vezes. Por essa razão, os apanhadores fazem-se acompanhar de um enxoval enorme, constituído por uma mistura de panos velhos reaproveitados (um antigo lençol em estopa, por exemplo) e de toldos sintéticos expressamente comprados para o efeito. Quando chegam aos sítios, parecendo bandos de feirantes clandestinos, até os pássaros fogem assustados, e admirados, com a concorrência desleal! Nada acontecendo por acaso, o material sintético, cuja aquisição propositada pode ser vista como um investimento, visa tornar o “patchwork” amovível mais leve, mas o algodão, mais pesado, continua a ser útil para lhe conferir estabilidade, e obviar à tal irrequietude do vento. De inovação em inovação, ainda nos vamos ver a usar uma daquelas máquinas eléctricas portáteis que varejam a azeitona e, consequentemente, uns toldos especiais que fecham à volta da oliveira! Um luxo! Uma outra modernidade recentemente introduzida na apanha da azeitona é a utilização de luvas por parte dos mais “fiscosos”. São uns utensílios preciosos, que mantêm as mãos limpas e livres de arranhões, mas que lhes retiram a desejável sensibilidade de pianista. Contribuem, juntamente com os ganchos e a falta de jeito dos apanhadores, para a perda de pernadas, ramitos e olhos que dariam azeite no próximo ano! Um exagero de perdas, considerou o pai, quando iniciou a poda das oliveiras; uma estragação, diria o avô! Como diria das azeitonas que ficaram na árvore e do rebusco que não se fez! No tempo dele, a sustentabilidade era indissociável da colheita. Escolhemos a azeitona à máquina, mas é sempre preciso retirar à mão umas tantas folhitas teimosas. Precedida de um cálice de ginjinha para aquecer, é a última tarefa colectiva do dia, com uns a despejarem a azeitona na cuba, e outros a retirarem as tais folhas renitentes. Apesar da máquina e da luz eléctrica, escolher azeitona continua a ser um trabalho desagradável. Imagine-se como seria escolhê-la manualmente, horas a fio, pela noite fria dentro, à luz da candeia ou do candeeiro a petróleo. Não raro depois de as mesmas pessoas a terem carregado de longe, pelas veredas pedregosas e compridas da serra. Quanta mudança e quanta mais para fazer! Cinco anos volvidos, os “ais” “uis”e “upas”, que acompanham o esforço físico e intelectual que a actividade exige, tornaram-se mais intensos e frequentes, as mentes rejuvenesceram, os corpos ganharam leveza, mas já não recuperaram a elegância de outros tempos. Pena!
4. O azeite, produto único a preservar Por falta de transporte adequado, e para salvaguardar a frescura da azeitona, alguns produtores vão ao lagar várias vezes, frequentemente utilizando mais do que uma viatura. Acrescendo aos elevados custos do trabalho e à poia paga no lagar, estas deslocações concorrem para tornar o azeite serrano, produto biológico único em aroma e sabor, num bem sem preço. Recorreu-se, uma vez mais, ao Lagar de Espariz, que fica a 30 km de distância. Concretizada a redução de pessoal que já se fazia adivinhar [4], o lagar funciona hoje apenas com uma ou duas pessoas. Talvez por isso, ou porque continua a ser raro ver por ali mulheres sozinhas, houve sempre alguém que se prontificou para nos ajudar, nas três vezes que por ali passámos. Muito bonita e comovente esta solidariedade! Sem prejuízo da qualidade do atendimento de que fomos alvo, continua a sentir-se a falta da serenidade sábia do antigo lagareiro senhor Fernando, que a senhora agora de serviço lembra muito. O lagar de Espariz é um equipamento à dimensão humana, como imagino que sejam o de Vila Nova do Ceira e os outros que também recebem punhados de azeitona. Este ano, que a produção foi escassa nas zonas ribeirinhas do Alva e do Mondego, no início da safra, a média de azeitona por cliente atendido era de 150 kg. Para o confirmar, lá estavam as tais tabuinhas a que há uns anos chamei de bilhete de identidade da azeitona. Contrariando a racionalidade económica dominante, estas pequenas produções assumem particular relevância, assim como a disponibilidade dos empresários lagareiros para pesarem a azeitona à entrada, e dividirem o azeite no final dos ciclos de produção partilhados. A fabricação do azeite, para auto consumo ou comercialização, é um contributo para a economia doméstica das famílias. Mas configura-se, também, como valorização do recurso que são as oliveiras, e dado para a preservação da biodiversidade e da paisagem serranas, elas próprias um recurso a potenciar. Quanto aos lagares, que são um investimento caro de retorno lento devido ao funcionamento sazonal, volto à sugestão de há anos. Sendo a sua existência e proximidade uma condição para a continuidade da fabricação do azeite, porque não considerar esse serviço público, fazendo prevalecer uma lógica de economia social e solidária? Neste registo, porque não reactivar, dotando-os de tecnologia moderna, alguns dos lagares que fecharam na última década, quando ainda prestavam um bom serviço às comunidades? No desconhecimento do futuro, mas na esperança dele, valorizar e preservar o que temos é um imperativo do respeito e da solidariedade para com os vindouros.
Lisete de Matos Açor, Colmeal, Janeiro de 2011
[1] A Fabricação do Azeite. Persistência e Mudança. In: Jornal de Arganil, de 9 de Dez. 2004; A Comarca de Arganil, de 11 de Jan. 2005. [2] António Firmino da Costa, Sociedade de Bairro: Dinâmicas Sociais e Identidade Cultural, Oeiras, Celta Editora, 1999, p. 304. [3] Augusto Santos Silva, Tempos Cruzados. Um Estudo Interpretativo da Cultura Popular, Porto, Edições Afrontamento, 1994. [4] Entreajuda no Lagar. In: Jornal de Arganil, 4 de Jan. de 2007, A Comarca de Arganil, 9 Jan. de 2007.