Por nos dar um bom retrato de Hermano Alves e a sua ligação ao nosso concelho, transcreve-se aqui a crónica que o nosso conterrâneo Fernando Costa escreveu para Arganília - Revista Cultural da Beira Serra (II Série, nº 9, 1999):
«Escrever sobre Hermano Neves, falecido em Lisboa em 2 de Maio de 1929, que foi um dos mais prestigiosos jornalistas do seu tempo, é, por motivos de ordem vária, algo que nos atrai, entusiasma. Todavia, como nos finais dos anos oitenta e em relação aos antecedentes lemos diversos comentários recheados de imprecisões, impõe-se recuar no tempo, aos progenitores: no Colmeal, em 19 de Dezembro de 1861, nasceu António Joaquim das Neves, o qual frequentou a escola primária na época já existente na aldeia. Aos treze anos incompletos, em 7 de Agosto de 1874, o moço, sozinho ou acompanhado, dirigiu-se à Sarnoa seguindo de diligência para Lisboa, onde o pai se encontrava. E, em 26 de Agosto, embarcou num qualquer vapor rumando à ilha da Madeira. Desconhecemos o motivo da viagem, sabemos, isso sim, ter regressado à capital em finais de 1875, e, em curo período, deslocar-se ao Colmeal no ano seguinte. Trabalhando e continuando os estudos, em 14 de Março de 1878, fez exame de admissão ao Liceu e, em 1 de Julho seguinte, era professor elementar na escola Moderna, sediada no Palácio Marquês de Tancos, na Costa do Castelo, 13. Além de idealista republicano, uma das suas ambições profissionais era o regresso às origens. Pelos hábitos contraídos na cidade, temperamento, ideias políticas, maneira de ser e estar na vida, certamente começou por “descobrir” a religião, deslocar-se a Arganil, reunir-se em Góis com superiores e outros professores, mesmo com políticos locais, conhecer Alvares. Numa qualquer deslocação ou reunião conheceu o amor da sua vida, ficou apaixonadocomo hoje se diz. As regras de antanho eram outras, as palavras de amor, os sentimentos raramente se transmitiam de viva voz: a carta era o meio utilizado para o homem expressar o que sentia pela mulher. Com data de 30 de Outubro de 1883, Emília Neves e Silva, natural de Pampilhosa da Serra e professora de Alvares, recebeu carta de amor subscrita por António Joaquim das Neves, à qual compreensivelmente respondeu de forma evasiva em 5 de Novembro seguinte. Carta para um lado, carta para outro e, certamente, alguns encontros pessoais com a presença de terceiros como as regras da época exigiam, culminam em 23 de Fevereiro de 1884 no matrimónio de Emília e António, professores respectivamente em Alvares e Colmeal, povoações sonde continuaram exercendo a profissão.Apesar da distância que os separava, a pé ou a cavalo, António Joaquim das Neves deslocava-se com regularidade a Alvares para, logicamente, conviver com a mulher. Em finais esse ano foi lavrado na igreja Paroquial de Alvares o Assento de Baptismo nº 99, onde foi manuscrito: “Aos vinte e nove dias de Dezembro de mil oitocentos e oitenta e quatro baptizei solenemente (…) um indivíduo do sexo feminino a que dei o nome de HERMANA (as maiúsculas são nossas) que nasceu nesta vila e freguesia (…) pelas sete horas da manhã do dia onze do corrente mês”, filha de António Joaquim das Neves e Emília Neves e Silva. No final do manuscrito rectifica-se: “depois de ter sido lido e conferido perante a madrinha se achou haver engano no sexo e nome, por quanto o indivíduo baptizado é do sexo masculino e se deu o nome de Hermano”. Como no início e margem do Assento se manteve nome feminino, a finalização do bondoso padre e padrinho foi de, na altura adequada, não convocarem o afilhado para o serviço militar por se tratar de uma rapariga. Eventualmente criada a escola feminina, no último trimestre de 1885, o casal Neves e o filho Hermano já viviam no Colmeal, localidade onde, em 4 de Julho de 1886, nasceu o segundo filho, uma menina, a qual foi baptizada em 1 de Agosto seguinte com o nome de Palmira. Aos quatro anos já Hermano Neves sabia ler e escrever e, depois de ter estudado em Lisboa e Coimbra, frequentou a Escola Politécnica, mas em face do seu feitio boémio não teve grande aproveitamento nos estudos superiores. Por outro lado, espevitado, de extraordinária vivacidade, revelou desde muito novo excepcionais aptidões artísticas e literárias. Os seus versos, alguns divulgados nas mais diversas publicações de então, mereceram elogiosas referências, tendo o insuspeitado Bulhão Pato escrito quem “faz versos assim quando se não deixe cegar pelos primeiros aplausos, não se preocupar com ventículos e correntes literárias, cultivar a língua, será um poeta notável”. Os seus desenhos, de espirituoso humorismo, foram publicados na “Comédia Portuguesa”, usando o pseudónimo R. Mano, com o qual fundou a revista denominada “Pst”, que ficou famosa por algumas charges mordazes. Consciente da falta de aproveitamento escolar, foi estudar para a Alemanha, atraído pela fama dos centros de cultura que ali existiam. Mas como não possuía recursos para a viagem e não querendo recorrer a seu pai, concebeu a ideia de fazer a viagem de bicicleta, propondo-se promover a divulgação de determinada marca, que lha pagaria as despesas. Porém, o conselheiro José de Almeida, um velho seu amigo, dissuadiu-o, emprestando-lhe as libras necessárias para a viagem. Expedida de Berlim, onde se formou em Medicina, Hermano Neves escreveu uma longa e apaixonante missiva. Algumas citações: “Devo partir brevemente para o Colmeal. Isso é o mais importante”. “Como não estou disposto a perder os meus honorários aí farei as minhas crónicas e artigos enquanto lá estiver, pois tenciono receber diariamente jornais de Berlim e Paris. Para não perder, irei também trabalhando na minha tese, para a qual preciso também de muito sossego. Levo todos os meus livros e instrumentos. A minha biblioteca fica lá (…) pois não me fazem os livros atrasados (…) tenho mais de duzentos livros, que aqui só me servem agora para empecilhos, enquanto que mais tarde lá precisarei deles. Vou mandar fazer um caixote grande, que mandarei em pequena velocidade até à Louzã (creio é o terminus do caminho de ferro) e depois se verá a maneira de os fazer transportar ao Colmeal, em carro de bois ou o que valha, porque não há forças humanas que o possam fazer”. Mais adiante: “Eu continuo a receber aí os meus vencimentos dos dois jornais (Notícias e Paiz) que me dão cerca de (…) que hão de fazer bem boa conta”.“Na casa do Soladinho, se me der licença, faço o meu escritório e casa de trabalho, porque levo também o microscópio”. Na folha seguinte: “Desembarco no Porto, e sigo de caminho de ferro até à Louzã. Ficarei quando muito um dia em Coimbra, onde terei uns negócios a tratar. Na Louzã tomo o carro para Góis, Aí, hei de arranjar uma cavalgadura porque creio que não aguentarei a Serra a pé! Devo lá ter portadores à espera para as bagagens que são três malinhas de mão e uma maior”. A carta era dirigida à mãe, pela segunda vez professora no Colmeal, e por isso interroga:“Quer vir esperar-me a Goes? Eu sempre tenho que demorar-me lá algum bocado para estar com o Mário Ramos e agradecer-lhe um favor que ultimamente me prestou em que foi muitíssimo amável. Jantamos em Goes”. Não se esquecendo dos amigos de infância: “vou dar um alegrão ao Zé dos chães. Comprei-lhe uma máquina fotográfica que lhe vou dar. Levo ao Pai o melhor e mais moderno Atlas Universal que existe. É uma obra monumental. O Paisinho há-se gostar. É o presente dos anos dele, que não podia mandar pelo correio. Quero levar umas pequenas lembranças a toda a gente…” De uma sensibilidade e humanismo excepcional: “à gente humilde (…) que eu também o sou e nunca me esqueço de ninguém. À gente pobre não lhe dou lembranças, dou uma esmolinha”. Na Alemanha (Berlim) formou-se em Medicina, embora nunca tendo chegado a exercer a profissão. Posteriormente teve uma efémera passagem pela Faculdade de Medicina de Lisboa, onde foi assistente de Anatomia. Ainda assume a permanência na Alemanha, e para assegurar a subsistência, foi correspondente do “Diário de uma revista de modas (ele que não sabia nada de modas!). Gozava de tanto prestígio na Universidade de Wilhelm (Berlim) que o famoso professor Waldayr, quando veio a assistir ao Congresso de Medicina com que se inaugurou o edifício da Faculdade de Medicina, no Campo de Santana, em Lisboa, foi propositadamente a Sintra conhecer os pais de Hermano, para os felicitar pelo inteligente filho que tinham. Já disposto a não exercer clínica, enveredou de alma e coração pelo jornalismo, ingressando no “Dia” e depois no “Século”, do qual havia de transitar para o “Mundo”. Fundada a “A Capital”, com características de jornal moderno e feição republicana, entrou para aquele diário, do qual foi um dos mais notáveis e dinâmicos redactores. As coisas têm de ser analisadas em relação à época em que ocorrem. Por isso, não vamos especular se Hermano Neves se deslocou muitas ou poucas vezes à região onde nasceu. Porém, isso sabemos, não mais esqueceu o concelho de Góis (mantinha relações amistosas com as mais importantes figuras da vila) e, consequentemente, as suas raízes continuaram presas ao Colmeal, terra que o viu nascer, para onde foi levado com poucos meses, aprendeu as primeiras letras, passou a meninice, alguns períodos de adolescência e de homem. Com efeito, outro desses períodos ocorreu em Junho de 1916, tendo no mês seguinte, em seis magníficas peças literárias (“Estada da Beira, O meu rio Ceira, Uma região sem estradas, Monumentos desconhecidos, Utilizemos a hulha verde”), intituladas “A Suissa Portuguesa”, publicadas em “A Capital”, o mais lido jornal do tempo, divulgado as potencialidades da região, carências, apresentando eventuais soluções para minorar o atraso latente. Num desses textos, em jeito de lamento e referindo-se ao concelho de Góis: “Facilmente nos convencemos de quanto é injusto o abandono a que por arte dos poderes públicos tem sido votada a formosíssima região”. Hermano Neves, possuindo uma vasta cultura literária e científica, revelou-se um dos mais notáveis jornalistas do seu tempo, modelar em todos os géneros – na crítica, no comentário, na crónica e fundamentalmente na grande reportagem. Ávido de curiosidade e de saber, viajou muito pela Europa, Brasil e África. Percorreu regiões inóspitas, andou meses numa verdadeira expedição, acompanhado de grupos de carregadores, fazendo, ele próprio, as suas observações meteorológicas, com aparelhagem adequada e enviando reportagens vivas e coloridas dessas viagens de antigas colónias. Em 1914, quando rebentou a Grande Guerra, foi enviado para França, donde escreveu notícias, artigos e entrevistas sensacionais, entre as quais uma com Clemanceu, que ficou célebre. Pode dizer-se que Hermano Neves foi o iniciador do Jornalismo moderno, nomeadamente com uma série de reportagens sobre as incursões monárquicas, no princípio das da segunda década deste século. Ficaram também memoráveis as suas reportagens da primeira Grande Guerra. Democrata de sempre e arrastado pelas suas convicções, ciente de que era esse o interesse do País, não obstante ter vivido na Alemanha e admirar a cultura germânica, bateu-se desde a primeira hora pela causa dos Aliados, defendendo, inclusivamente, como imperativo nacional a nossa entrada no conflito. Também, com outro colega jornalista, fundou a “Vitória”, simbolizando no título a vitória das Aliados e Republicanos, após o consulado de Sidónio Pais – que igualmente combateu. Conhecedor e apaixonado dos problemas ultramarinos, foi para Angola, quando Norton de Matos assumiu as funções de Alto-Comissário, prestando-lhe importante colaboração nessa fase em que o grande democrata pretendia lançar e desenvolver as ideias de evolução social e política ao território no sentido de autonomia, que teria facilitado a sua integração na concepção do mundo actual, com rara percepção do futuro. De regresso à Metrópole, não voltou ao jornalismo, desenvolvendo, no entanto, grande actividade na imprensa clandestina, contra a ditadura implantada em 1926. O teatro também o atraiu. Tendo, ainda estudante, colaborado numa revista académica, traduziu e adoptou do alemão, que falava correctamente, “O Primeiro herdeiro”, “Heróis do Mar”, “A Princesa do Circo”, “Domador de Sogras”, etc. Igualmente, são também da sua autoria os livros “Como triunfou a República”, reportagem viva do 5 de Outubro, que apareceu ao público poucas semanas depois da implantação do novo regime; “Guerra Civil”, em que historia e evoca as incursões monárquicas; e “Três Dias em Olivença”, em que se reúnem as brilhantes crónicas que escreveu em 1917, quando ali se deslocou. Dedicou-se também aos temas históricos, especialmente à figura de D. Sebastião e da trágica jornada de África. Este trabalho, como não podia deixar de ser, levou-o a Alcácer-Quibir e a reunir vasta e valiosa bibliografia sobre a matéria. Este ilustre filho da serra, que faleceu com 44 anos, depois de uma vida muito intensa e dispersa, na altura começava uma obra mais perdurável, no domínio da História, que prendia então a sua especial atenção. O nome de Hermano Neves foi perpetuado em arruamentos de Lisboa (freguesia do Lumiar), Góis, Alvares e no Colmeal, em lápide onde se lê: “Nesta casa viveu o goiense Hermano Neves (1884-1929), um dos maiores jornalistas portugueses de todos os tempos / filho de António das Neves e Emília Neves / que foram professores nesta aldeia / Homenagem da U.P.F.C. – 06-08-1989”.»